Retirado daqui.
“Você que é da História…”
Eu tenho certeza que TODOS os historiadores da minha geração já passaram por algo parecido.
Reunião de família, te apresentam o cunhado de alguém ou tio de alguém ou primo da mãe do Badanha. O sujeito é advogado ou semelhante. Já chega te abalroando:
- Tu é da História, né?
- Sou.
- Eu gosto muito de História. Acho lindo. Pensei até em cursar, só não fiz por causa do salário. Não dá, né?
- Mmmm
- Mas eu leio muito História, por conta. Por diletantismo, sabe? Eu até lembro de um professor que eu tive na faculdade de Direito. Era juiz até: Doutor Demerval Mascarenhas Paranhos do Couto e Silva. Acho que era formado em História. Não conhece?
- Não…
- Uma pena, acho que tu, que gosta de História, iria aprender muito com ele. Eu aprendi. Ele sempre começava o conteúdo fazendo um histórico, sabe. Ninguém suportava… mas eu ficava encantado.
- Mmmm…
- E onde é que tu leciona História?
- Na universidade.
- Sei… mas me diz uma coisa: lá vocês ensinam a verdadeira história mesmo, ou essa que ensinam por aí, para enganar a gurizada?
- Não entendi.
- Tipo: vocês ensinam que o Brasil não foi descoberto por acaso?
Eu fico em silêncio, quase em alarme, ele insiste.
- Ensinam ou não ensinam?! [a cara dele me assusta]
- Na verdade, isso não tem importân…
- COMO NÃO TEM IMPORTÂNCIA? Tô dizendo, enganam a gurizada! Na verdade os portugueses sabiam já que tinha terra aqui. E vieram de propósito. Encheram os índios de quinquilharias e trocaram pelo pau-brasil, que valia milhões. Tudo em troca de uns machadinhos, espelhinhos, bugigangas!
Nesse momento, me sinto chamado ao dever e tento ser sério.
- Não foi bem assim. Os povos que habitavam o litoral praticavam uma agricultura a partir de queimadas e derrubadas de floresta. E usavam machados de pedra, então os machados de ferro podem ter sido vistos, por eles, como algo muito valioso.
Ele me olha, intrigado.
- Agricultura, é? Achei que eles só caçavam e ficavam lá, na rede… Bem, mas os portugueses eram todos burros mesmo… nosso azar foi ter sido colonizado por eles. Se tivéssemos sido colonizados por holandeses…
- Seríamos o Suriname.
Ele me olha feio. Mas segue me ensinando.
- Tá, mas pior papel fizeram os negros, que vendiam seus próprios irmãos na África.
Eu começo, realmente, a ficar sem paciência.
- Não, não vendiam.
- Daí sim!
- Os reinos e tribos africanas vendiam os rivais.
- Mas era tudo negro e todos africanos.
Eu elevo o tom de voz.
- Mas eles nem sabiam o que era África.
- Eram burros?
- Não, eles não tinham satélite! Tinham tanto a ver uns com os outros como um espanhol e um búlgaro.
Ele não se dá por vencido e procura um assunto que lhe seja mais familiar.
- Que seja, mas eu não gosto de ser brasileiro. Prefiro dizer que sou gaúcho!
- Mmmm
- Claro, porque os gaúchos não são acomodados que nem os brasileiros!
- Como assim?
- O povo brasileiro é muito frouxo, deixa todo mundo passar por cima. Já os gaúchos não! Quando quiseram nos meter o cabresto, fizemos a Farroupilha!!
- Mas, na mesma época, teve a Balaiada no Maranhão, Cabanagem no Pará, Sabinada na Bahia… E, na Farroupilha, metade dos rio-grandenses lutou pelo Império…
Ele fica meio perdido, mas tenta lançar a cartada final.
- Esse teu sobrenome. É italiano com alemão, né?
- Sim.
- Mistura boa!
- Hã?
- Mistura boa! Eu mesmo sou alemão puro. Meus ancestrais vieram a Pomerânia, de um lado, e da Westfália de outro. Eram nobres!
- Como é que é?
- Sim, eram nobres. E os da família da minha mulher também, só que eram italianos. Quer ver, vou chamar ela. Mãe, vem cá. Ó… ele é da História. E é de origem também. Eu estava contando que nossos ancestrais eram nobres, na Europa, deixaram um castelo e muitas terras.
A mulher, com ar simpático, assente com a cabeça. Mesmo assim, não me contenho.
- Acho difícil. A grande maioria dos imigrantes era plebeu e pobre. Aliás, muito pobre.
Ele perde a paciência comigo.
- Mas agora tu quer saber mais que eu sobre a minha família. Eu encomendei a pesquisa num site da internet, me mandaram até o brasão, eu coloquei ele lá, em cima da minha churrasqueira. Se tu duvida entra no computador e digita: “KLAGENSMÖBELUFT”.
Então solta uma risadinha nervosa, e completa:
- Claro, isso SE tu soubesse ler em alemão…
E sai, furioso, batendo os calcanhares. Ficamos eu e a gentil senhora, que me olha como quem pede desculpas.
- Deixa o Arno, ele é meio grosso mesmo.
- Tudo bem, acho que eu também fui…
- Mas escuta, tu é da História, então?
- Sou.
- Eu tive uma experiência… acho que eu nem devia estar falando isso. Mas é que tu vai me entender… É que… eu estive lá, sabe?
- Lá onde?
- Na História! Quer dizer… no plano astral…
Eu abro a boca e tento impedir que ela continue, tento dizer que não tem nada a ver, mas ela já está falando quase para si mesma. Baixa a voz, olhos marejados, segura o meu braço e confidencia:
…eu fiz uma regressão a uma vida passada minha. Nossa, entendi tanta coisa… Sabe, eu fui CLEÓPATRA!
Eu respiro fundo, penso, percebo que já bebi o suficiente e tomo a melhor decisão. Solto um sorriso que torço para que não pareça tão falso e sapeco:
- Cleópatra! Nossa…! Mas me diz… e como era lá?