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25 de set. de 2013

Ditadura Civil-Militar e suas combatentes: depoimentos de mulheres presas

Encontrei essa reportagem muito boa da Marie Claire sobre os depoimentos de presas políticas durante o período da Ditadura Civil-Militar no Brasil que estão ressurgindo agora através da Comissão da Verdade (que estará investigando os crimes cometidos naquele período da história do Brasil até dezembro do ano que vem).
São depoimentos fortes que merecem ser lidos e relidos sempre. 

Os testemunhos das mulheres que ousaram combater a Ditadura Militar

Em pé sobre uma cadeira, nua, encapuzada e enrolada em fios, Ana Mércia Silva Roberts, então com 24 anos, esforçava-se para manter os braços abertos, sustentando uma folha de papel presa entre os dedos de cada mão. Ela estava naquela posição havia horas. A cada vez que o cansaço lhe fazia baixar minimamente os braços, um choque elétrico percorria todo seu corpo. E as gargalhadas preenchiam a pequena sala. Eram vários homens, talvez oito, talvez dez. Cada um com um rosto, uma história, uma vida. “Um dos meus torturadores poderia ser meu avô, um senhor de gravata-borboleta para quem eu daria lugar no ônibus; o outro era um loiro com chapéu de caubói. Havia um homem com jeito de pai compreensivo que chegou a me dar um chocolate, e um jovem bonito com longos cabelos escuros, que andava de peito nu, ostentando um crucifixo, de codinome Jesus Cristo”, afirma.
INTEGRANTES DO GRUPO "TEATRO EM GREVE CONTRA A CENSURA" PROTESTAM NO RIO DE JANEIRO EM FEVEREIRO DE 1968 (Foto: Gonçaves (CPDOCJB))
INTEGRANTES DO GRUPO "TEATRO EM GREVE CONTRA A CENSURA" PROTESTAM NO RIO DE JANEIRO EM FEVEREIRO DE 1968 (FOTO: GONÇAVES (CPDOCJB))

O rosto desses algozes, integrantes da repressão militar, e as cenas do dia em que teve de ser estátua viva perante eles são parte das lembranças que Ana Mércia, hoje 66, guarda de quase três meses de prisão no DOI-Codi e no Dops, dois centros paulistanos de tortura e prisão de oposicionistas ao regime militar, instaurado sete anos antes. Integrante do Partido Operário Comunista, ela esteve nos porões da ditadura em 1971, mesma época em que o País vivia a prosperidade do “milagre econômico” e o ufanismo alimentado pela conquista da Copa de 70 e por slogans como “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Nos meses em que ficou encarcerada, seu corpo e mente foram massacrados de diversas formas. Mas não é ao descrevê-las que seus olhos ficam marejados. “Estranhamente, eu não me lembro de quase nada daquelas semanas, meses. Fiz terapia, mas não consigo recuperar esses trechos da minha vida. O que mais me dói é isso. Vários pedaços de mim e da minha existência não me pertencem, ficaram com eles (os militares)”. Ana Mércia é uma mulher com pouca memória das torturas daqueles porões. E é também uma metáfora do próprio Brasil, que segue desmemoriado das histórias do regime militar (1964 a 1985) quase 30 anos depois do fim da ditadura. A diferença entre Ana Mércia e o Brasil é que ao País foi dada a chance de recuperar e registrar os detalhes de sua história. É essa a missão da Comissão Nacional da Verdade, criada pela presidenta Dilma Rousseff (ela mesma vítima de torturas do Estado) e que tornou acessíveis uma série de papéis até então secretos. Desde maio de 2012, 19 milhões de páginas de documentos foram retirados de seus arquivos e estão em análise, e cerca de 350 pessoas foram ouvidas. É um movimento delicado e, para muitos, atrasado. Até então, o Brasil já havia debatido por anos como lidar com a violência da época.
A Ordem dos Advogados do Brasil chegou a pedir, em 2008, a revisão da Lei da Anistia, que perdoava todos os “crimes políticos” e beneficiava também torturadores, mas teve o pedido negado pela Justiça. Da sua parte, grupos militares se opunham à quebra de sigilo e à própria Comissão por temer uma caça às bruxas. Foi depois de muito diálogo que se chegou à fórmula de um grupo de trabalho com ênfase na transparência: a Comissão da Verdade pode acessar qualquer documento que considerar importante e tem o poder de convocar pessoas para depor, mas não de julgá-las. Do primeiro ano de trabalho, emergiram as conclusões de que a tortura começou em 1964, pouco depois do golpe, e ocorreu em pelo menos sete estados diferentes. Nesse pouco tempo, o Estado brasileiro admitiu que os assassinatos do deputadoRubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog foram obra de seus agentes, e descortinou o recrutamento e o extermínio de tribos indígenas da Amazônia pelos militares.
Tudo isso dá contornos mais nítidos à história recente do País, mas o grupo ainda tem muito a contar até dezembro de 2014, quando os trabalhos serão encerrados. Uma das principais incumbências da Comissão é esclarecer a participação das mulheres na resistência à ditadura e as torturas a que foram submetidas. “Acreditamos que as mulheres sofreram violências específicas, sexuais, motivadas também por machismo, que buscavam destruir a feminilidade e a maternidade delas”, afirma Glenda Mezarobba, uma das coordenadoras do grupo Ditadura e Gênero, que investiga o assunto na Comissão da Verdade. Os trabalhos ainda não possuem conclusões definitivas, mas há fortes indícios do que pode ter acontecido às brasileiras durante as duas décadas de regime militar. “Hoje, trabalhamos com um número de 500 mortos pela ditadura, 50 deles seriam mulheres. Mas sabemos que os dois números estão subestimados”, afirma Glenda, empenhada em refazer a estatística.
CENA COMUM EM 1968: A CAVALARIA DS POLÍCIA MILITAR TOMA A AVENIDA SÃO JOÃO, NO CENTRO DE SÃO PAULO (Foto: Acervo Memorial da Resistência de São Paulo)
CENA COMUM EM 1968: A CAVALARIA DS POLÍCIA MILITAR TOMA A AVENIDA SÃO JOÃO, NO CENTRO DE SÃO PAULO (FOTO: ACERVO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO)
A quantidade de processos reclamando anistia sugere que esse número é muito maior. Desde 2001, o Ministério da Justiça recebe pedidos de indenização de brasileiros que, de alguma maneira, tiveram a vida marcada pelo regime militar. São parentes e vítimas de violência ou pessoas que, por motivo exclusivamente político, ficaram impedidas de trabalhar. Hoje, o órgão contabiliza mais de 73 mil pedidos. Mais de 40 mil já foram aceitos. As mulheres foram fundamentais no combate ao regime em todas as suas fases. Seu engajamento nos movimentos pela anistia dos presos políticos, que muitas vezes culminaram com passeatas exclusivamente femininas,são a parte mais conhecida dessa militância. Mas, nas organizações de esquerda Ditadura, elas também foram importantes. Guardavam armas e abrigavam militantes (aliás eram preferidas para essa função, pois levantavam menos suspeitas), traduziam jornais comunistas estrangeiros, participavam das aulas de doutrinas ideológicas, da elaboração dos planos de assaltos e sequestros, tinham aulas de tiro e muitas foram a Cuba fazer curso de guerrilha. Nas organizações clandestinas, chegaram a dirigentes.
MANIFESTAÇÃO DE MULHERES CONTRA A VISITA DO ATIRADOR ARGENTINO JORGE VIDELA A SÃO PAULO, EM 1980 (Foto: Material Brasil Nunca Mais do Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp)
MANIFESTAÇÃO DE MULHERES CONTRA A VISITA DO ATIRADOR ARGENTINO JORGE VIDELA A SÃO PAULO, EM 1980 (FOTO: MATERIAL BRASIL NUNCA MAIS DO ARQUIVO EDGARD LEUENROTH/UNICAMP)

“Era preciso que houvesse uma mulher em cada esconderijo, para manter a aparência de uma casa normal”, afirma Glenda. Elas também agregavam uma faceta afetiva e familiar às organizações, muitas foram mães na clandestinidade ou na cadeia. Na descrição feita pela psicóloga argentina, naturalizada brasileira, Maria Cristina Ocariz, a mulher militante parece a expressão viva da frase do revolucionário argentino Ernesto Che Guevara: “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. “Elas tinham a mesma garra que os homens. Perdiam companheiros, assassinados pelo regime, e ainda assim seguiam na luta, não por frieza, mas por convicção ideológica de poder construir um mundo melhor para seus filhos.” Cristina, que hoje coordena a Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo, um serviço que oferece espaço para reparação psicológica aos afetados por ditaduras, fez parte da resistência aos militares argentinos antes de se exilar no Brasil. Na juventude, na década de 70, ela deixava seu bebê de 1 mês nos braços da mãe, em Buenos Aires, ia a manifestações e corria para casa a tempo de amamentar seu filho. Quando eram presas, as mulheres tinham pela frente não apenas a tortura, mas também o sexismo e a violência sexual. “É claro que ser mulher fazia diferença. Porque ainda que os homens torturados também tivessem de ficar nus, eles tiravam as roupas na frente de outros homens. A mulher ficava nua diante dos olhos cobiçosos e jocosos daqueles homens, essa era a primeira violência”, afirmaTatiana Merlino, organizadora do livro "Luta, Substantivo Feminino", publicado em 2010 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que descreve o assassinato de 45 mulheres militantes.
NUDEZ E TORTURA
“A primeira coisa que eles fizeram quando entrei na sala de depoimento foi me mandar tirar a roupa, eu já fiquei apavorada”, afirma Ana Maria Aratangy, de 66 anos. “Eu não esperava por aquilo. Eu mesma fui tirando a roupa, achei que era melhor do que deixá-los arrancar. Acho que foi pior do que as torturas que vieram depois”. Ana Maria era membro do Partido Operário Comunista quando foi presa, aos 24 anos, e estava grávida de algumas semanas, mas não sabia. Estudante do sexto ano de medicina, ela afirma que sua militância era tímida: guardava duas armas em casa e tinha leituras consideradas

subversivas. Nem sequer conhecia os líderes do POC. Até por isso, não teve muito a dizer quando vieram os choques nos mamilos e os tapas no rosto. Tampouco pôde conter os gritos. Enquanto gritava, sua mãe, que havia sido presa junto com ela, ouvia da sala ao lado. Ana Maria só saiu da prisão aos cinco meses de gestação. Sua filha, hoje, tem 41 anos.
PASSEATA DE MULHERES NO LARGO CARIOCA À CINELÂNDIA, NO RIO DE JANEIRO EM 1983 (Foto: Almir Veiga (CPDOCJB))
PASSEATA DE MULHERES NO LARGO CARIOCA À CINELÂNDIA, NO RIO DE JANEIRO EM 1983 (FOTO: ALMIR VEIGA (CPDOCJB))

“Depois de nos colocarem nuas, eles comentavam a gordura ou a magreza dos nossos corpos. Zombavam da menstruação e do leite materno. Diziam ‘você é puta mesmo, vagabunda’”, afirma Ana Mércia. As violências que seguiam incluíam, em geral, choques nas genitálias, palmatórias no rosto, sessões de espancamento no pau de arara, afogamentos ou torturas na cadeira do dragão, cujo assento era uma placa de metal que dava descargas elétricas no corpo amarrado do prisioneiro. Mas com as mulheres era diferente. “Havia uma voracidade do torturador sobre o corpo da torturada”, afirma a psicóloga Maria Auxiliadora Arantes, cuja tese de doutorado sobre tortura no Brasil será publicada este ano. “O corpo nu da mulher desencadeia reações no torturador, que quer fazer desse corpo um objeto de prazer.”
Foi exatamente o que viveu Ieda Seixas, de 65 anos. Aos 23, ela foi presa por causa da militância do pai, operário. Demorou muito tempo para ser capaz de relatar o que passou. E, quase 40 anos depois, não consegue conter as lágrimas ao descrever: “Levaram-me para um banheiro durante a noite, no DOI-Codi, eram uns dez homens. Fiquei sentada em um banco com dois deles me comprimindo, um de cada lado. Na minha frente, em uma cadeira, sentou um cara que chamavam de Bucéfalo. Ele me dava muito tapa na cara, a minha cabeça virava de um lado para o outro, mas eu nem sentia, porque um dos homens que estava sentado ao meu lado não parava de passar a mão em mim, colocou os dedos em todos os meus orifícios. Era tão terrível que eu pedia: ‘Coloquem-me no pau de arara’. Mas aquele homem dizia: ‘Não, gente. Não precisa levar essa aqui para o pau de arara. Comigo ela vai gozar e vai falar’.
Todos riam. Naquela noite, se eu tivesse tido meios, teria tentado me matar.” O suicídio pode ter sido o destino de outras mulheres que não conseguiram suportaram a violência sexual. Segundo Luci Buff, da Comissão da Verdade, começam a aparecer informações de que até mesmo freiras teriam sido estupradas por militares. Amélia Teles, de 68 anos, relata que não foi capaz de conter o vômito ao ver que o torturador ejaculava sobre seu corpo nu e ferido, depois de masturbar-se olhando para a vítima, amarrada na cadeira do dragão. Militante do Partido Comunista, ela tinha dois filhos, de 5 e 4 anos, quando foi presa, em 1972. O assédio sexual do torturador não foi a pior parte. Em um dos dias na prisão, depois de ser exaustivamente torturada Amélia viu a porta da sala se abrir e seus dois filhos entrarem. “Foi a pior coisa do mundo. Eu, amarrada (nua) na cadeira do dragão, sem nem poder abraçá-los. A minha filha me perguntou: ‘Mãe, por que você está azul?’. Eram as marcas dos hematomas, do sangue pisado, espalhados pelo meu corpo”, afirma Amélia. “Eles foram claros comigo: para manter meus filhos vivos, eu teria que colaborar com eles.” Os dois filhos hoje são adultos. Passaram por terapia e guardam apenas fragmentos de memória de sua visita ao DOI-Codi. Nenhum quis ter filhos. Amélia credita esse fato ao trauma na infância.
A LÍDER ESTUDANTIL CATARINA MELONI EM PASSEATA. MAIS TARDE, ELA ESCREVERIA O LIVRO"1968: O TEMPO DAS ESCOLHAS" (Foto: Jesus Carlos (Imagem Global))
A LÍDER ESTUDANTIL CATARINA MELONI EM PASSEATA. MAIS TARDE, ELA ESCREVERIA O LIVRO"1968: O TEMPO DAS ESCOLHAS" (FOTO: JESUS CARLOS (IMAGEM GLOBAL))

Agredir crianças para atingir a mãe não era um recurso excepcional. Nem sequer as mulheres grávidas eram poupadas. Em 1974, com uma barriga de seis meses de gestação, a militante do grupo revolucionário MR-8 Nádia Nascimento foi presa, junto com o seu companheiro, em São Paulo. “Já foram logo me dizendo que filho  de comunista não merecia nascer. Arrancaram minha roupa na frente do meu companheiro, que já estava muito machucado pela tortura, e perguntavam se ele queria que me torturassem, diziam que dependia dele. Ameaçaram me estuprar na frente dele, mesmo grávida. Até que,em um dado momento, me colocaram na cadeira do dragão. Ali, comecei a sangrar por causa dos choques e perdi meu filho”, conta Nádia, que teve uma série de complicações médicas decorrentes do aborto provocado e da falta de cuidados hospitalares. A criança se chamaria Lucas e hoje teria 39 anos de idade.
Também presa aos seis meses de gestação, Criméia de Almeida, de 67 anos, conseguiu manter seu filho na barriga, a despeito das torturas. Quando a bolsa estourou, na cela solitária que ela ocupava em uma carceragem do exército em Brasília, dezenas de baratas que habitavam o lugar começaram a subir por suas pernas, alvoroçadas por se alimentar do líquido amniótico. Embora pedisse ajuda, teve de esperar horas até ser transferida a um hospital. Lá, a ex-guerrilheira do Araguaia, que havia trabalhado como parteira na Amazônia, teve as pernas e os braços amarrados. “Quando o bebê nasceu, já o levaram para longe de mim. E o médico me costurou sem anestesia, eu gritava de dor. Daí passaram a usar meu filho para me torturar. Passavam dois dias sem trazê-lo para mamar. Quando ele vinha, estava com soluço, magro, morto de fome. Ele nasceu com quase 3,2 kg. Mas com um mês de vida pesava apenas 2,7 kg. Na infância, ele tinha muitos pesadelos, chegou a ter convulsões. É claro que ficaram traumas em todos nós. Quando eu estava presa e ouvia o tilintar de chaves na carceragem, que significava que alguém seria torturado, o bebê começava a soluçar dentro do útero. Hoje, aos 40 anos, João Carlos ainda soluça toda vez que fica estressado”, afirma Criméia.

Sobre a experiência, a ministra diz: “A Maria superou tudo e hoje é uma vencedora. Eu também superei. Tive outro filho que me deu a certeza de que o que fiz foi correto e me mostrou que eu ainda era capaz de ser mãe mesmo depois de todas as torturas que sofri
. Mas, ainda assim, relembrar isso é muito sofrido. Acho que cada um resolve à sua maneira. A Maria aprendeu a lidar com isso com mais liberdade e menos sofrimento. Eu, tudo o que tinha de falar, eu falei. Porque o pior não é a tortura física, mas a psicológica, a ameaça. As ameaças que faziam comigo de torturar a Maria na minha frente eram tão pesadas que talvez fossem mais fortes do que a própria tortura em si”.Ele não conheceu o pai, André Grabois, que até hoje é considerado desaparecido político. Criméia não teve a chance de enterrar seu companheiro. É provável que André tenha sido assassinado pelos militares durante a guerrilha do Araguaia – movimento comunista na região amazônica combatido pelo governo entre 1972 e 1974, no qual acredita-se que os militares tenham lançado bombas de Napalm, o mesmo químico usado no Vietnã, de acordo com mais uma revelação recente da Comissão da Verdade. Sorridente até ali, em um evento sobre educação internacional para mulheres, a ministra das mulheres, Eleonora Menicucci, ganhou um semblante pesado ao ser indagada por Marie Claire sobre sua história na ditadura. Quando foi presa, em 1971, tinha apenas 22 anos e uma filha de 1 ano e 10 meses. Para forçála a dar informações de sua atividade política, os militares colocaram a menina, Maria,  apenas de fralda, no frio. A criança chorava e os torturadores ameaçavam dar choques nela. Ieda Seixas, que foi aprisionada na mesma cela que a atual ministra logo depois dessa sessão de tortura, afirma: “A Eleonora andava como um animal enjaulado, de um lado para o outro, e dizia ‘minha filha, minha filha’. Tinha os olhos esbugalhados, passava a mão pelos cabelos com desespero, parecia que ia explodir. Era mais do que estar transtornada, ela estava em estado de choque”.
AS GRADES DO DOPS (Foto:  Material Brasil Nunca Mais do Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp)
AS GRADES DO DOPS (FOTO: MATERIAL BRASIL NUNCA MAIS DO ARQUIVO EDGARD LEUENROTH/UNICAMP)







O FUTURO
É com essa mesma memória que o Brasil tenta aos poucos lidar. A abertura dos arquivos e os depoimentos, que pode resultar em processos contra os torturadores, não são as únicas manifestações. No cinema, "Hoje", filme da diretora Tata Amaral, mostra o quão atual é nossa dívida com a história. A protagonista do longa, vivida pela atriz Denise Fraga, é uma ex-militante de esquerda cujo marido foi morto pelos militares. Ela recebe uma indenização pela morte dele e compra um apartamento, mas, no dia da mudança, o desaparecido ressurge. A figura do retorno mostra como é difícil seguir em frente sem resolver o passado. É assim no filme e na vida de Criméia, Amélia, Ieda, Ana Mércia e Ana Maria. “Ao fazer "Hoje", me deparo com uma sociedade que permite que sua memória seja roubada. E que aceita que, neste momento, alguém esteja sendo torturado numa prisão brasileira. Será que em algum momento a gente vai dizer: ‘Chega!’?”

19 de set. de 2013

Propaganda: a alma do negócio e vestígio da história

Ler e visualizar propagandas antigas em jornais é uma diversão. Os textos enaltecendo os produtos ou serviços são diferentes do que hoje conhecemos como textos de comerciais. A diferença também se apresenta nos desenhos feitos à mão, nas fotografias (que substituíram os desenhos), na forma de "vender o peixe".
Hoje publico uma propaganda de 1941 encontrada no jornal Correio da Manhã, na edição do dia 29 de Janeiro. Observem o desenho e o texto super requintado para vender o batom e demais cosméticos da empresa Michel.

Dica: se ficar ruim de ler o texto diretamente do blog, salve a imagem no seu computador. Ela será salva em uma boa qualidade para a leitura.  


18 de set. de 2013

É menina!


Sobre as (des)venturas de um gênero e as frases que acompanham uma parte da vida da menina:

É menina, que coisa mais fofa, parece com o pai, parece com a mãe, parece um joelho, upa, upa, não chora, isso é choro de fome, isso é choro de sono, isso é choro de chata, choro de menina, igualzinha à mãe, achou, sumiu, achou, não faz pirraça, coitada, tem que deixar chorar, vocês fazem tudo o que ela quer, isso vai crescer mimada, eu queria essa vida pra mim, dormir e mamar, aproveita enquanto ela ainda não engatinha, isso daí quando começa a andar é um inferno, daqui a pouco começa a falar, daí não para mais, ela precisa é de um irmão, foi só falar, olha só quem vai ganhar um irmãozinho, tomara que seja menino pra formar um casal, ela tá até mais quieta depois que ele nasceu, parece que ela cuida dele, esses dois vão ser inseparáveis, ela deve morrer de ciúmes, ele já nasceu falante, menino é outra coisa, desde que ele nasceu parece que ela cresceu, já tá uma menina, quando é que vai pra creche, ela não larga dessa boneca por nada, já podia ser mãe, já sabe escrever o nomezinho, quantos dedos têm aqui, qual é a sua princesa da Disney
preferida, quem você prefere, o papai ou a mamãe, quem é o seu namoradinho, quem é o seu príncipe da Disney preferido, já se maquia dessa idade, é apaixonada pelo pai, cadê o Ken, daqui a pouco vira mocinha, eu te peguei no colo, só falta ficar mais alta que eu, finalmente largou a boneca, já tava na hora, agora deve tá pensando besteira, soube que virou mocinha, ganhou corpo, tenho uma dieta boa pra você, a dieta do ovo, a dieta do tipo sanguíneo, a dieta da água gelada, essa barriga só resolve com cinta, que corpão, essa menina é um perigo, vai ter que voltar antes de meia-noite, o seu irmão é diferente, menino é outra coisa, vai pela sombra, não sorri pro porteiro, não sorri pro pedreiro, quem é esse menino, se o seu pai descobrir, ele te mata, esse menino é filho de quem, cuidado que homem não presta, não pode dar confiança, não vai pra casa dele, homem gosta é de mulher difícil, tem que se dar valor, homem é tudo igual, segura esse homem, não fuxica, não mexe nas coisas dele, tem coisa que é melhor a gente não saber, não pergunta demais que ele te abandona, o que os olhos não veem o coração não sente, quando é que vão casar, ele tá te enrolando, morar junto é casar, quando é que vão ter filho, ele tá te enrolando, barriga pontuda deve ser menina, é menina.

Por Gregório Duvivier. Retirado daqui.

16 de set. de 2013

Europa: fronteiras a conquistar e defender

O post de hoje é sobre um vídeo que mostra "o bailado das fronteiras e povos" que povoaram e povoam a Europa. Super sucinto, super rápido, cerca de três minutos para contar milhares de anos de povoamento do continente europeu.

Não consegui postar o vídeo diretamente aqui, portanto segue o link: http://www.liveleak.com/view?i=f54_1337075813

13 de set. de 2013

12.000 Anos de História: o documentário

O post de hoje apresenta um extenso trabalho de pesquisa e elaboração. Esse é um dos produtos finais da exposição "12.000 Anos de História - Arqueologia e Pré-História do RS" que está em exposição no Museu da UFRGS em Porto Alegre até 31 de Dezembro de 2013.
Um ótimo recurso didático para quem quer saber mais dessa extensa época da História. Pois a "Pré-História" vai muito além do "Neolítico, Paleolítico e Idade dos Metais"!

Segue o link do documentário:


Segue informações sobre a exposição no Museu da UFRGS:
A exposição está aberta a visitação de segundas a sextas das 9 às 18 horas, entre 23 de de abril e 31 de dezembro de 2013. No último sábado de cada mês a mostra estará aberta à visitação das 9 às 13 horas. Além da exposição, durante o ano serão disponibilizadas oficinas, cursos de capacitação de professores e kits arqueológicos didático/pedagógicos.O Museu da UFRGS fica na Av. Osvaldo Aranha, 277, Porto Alegre. A entrada é franca.

11 de set. de 2013

Onze de Setembro de 1973: Quarenta anos do Golpe Militar no Chile


Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.

O post e hoje não pode deixar de falar sobre a data. Onze de Setembro. Muitos lembrarão da queda das Torres Gêmeas em Nova York ocorrida em 2001. Entretanto, outro onze de Setembro envolvendo os EUA ocorreu em 1973. Daquele ano, eles não foram vítimas, mas participaram como algozes.
Segue a reportagem do Jornal Sul 21 sobre a data. Não esquecer que em 2011 eu postei um vídeo.

O dia final de Salvador Allende

Maurício Brum
No início da manhã de 11 de setembro de 1973, Salvador Allende ainda acreditava que o golpe de Estado em andamento poderia ser contornado. Não era a primeira vez que um grupo de militares se insurgia contra o governo. Agora, o levante havia começado pela Armada – e restava a esperança de que a revolta fosse reduzida a alguns navios no porto de Valparaíso. Allende confiava que Augusto Pinochet permaneceria tão leal quanto fora Carlos Prats, seu antecessor no comando do Exército. Acreditava que o golpe seria vencido ou, caso viesse mesmo, que não teria o aval de Pinochet. Mas seguia sem conseguir contato para se comunicar com o general.
– Pobre Augusto, deve estar preso – comentou o presidente com alguns companheiros próximos.
Naquela altura, Allende já se localizava no palácio de La Moneda. Havia sido acordado pouco depois das seis da manhã, por um telefonema inquietante informando a situação em Valparaíso: a cidade fora sitiada e jazia na mira de canhões dos navios de guerra do próprio país. O presidente puxou o telefone para tomar a posição do comandante da Marinha, Raúl Montero, mas não obteve resposta. Depois, tentou chamar Pinochet, que também não atendeu. O único a responder foi o general golpista Herman Brady, com a promessa jamais cumprida de enviar soldados para combater o movimento no litoral.
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Enquanto isso, o almirante Montero era mantido em prisão domiciliar por seus subordinados, agora às ordens de José Toribio Merino, que se autodenominou chefe da Armada. Já Pinochet estava encabeçando o golpe, embora o presidente ainda não soubesse. Por volta das 7:35 da manhã, enquanto Allende chegava a La Moneda, o comandante do Exército também desembarcava em sua base de combate naquela manhã: o quartel de telecomunicações de Peñalolén, na zona leste de Santiago, de onde passaria as instruções decisivas para a derrocada do governo constitucional.
Leia mais:
Ainda sem saber a dimensão do putsch, Salvador Allende entrou ao vivo na frequência da Rádio Corporación duas vezes antes de os militares lerem seu primeiro comunicado do dia. Em suas incursões, o presidente reiterou que “até o momento, não houve nenhum movimento anormal de tropas em Santiago”, e manifestou fé na existência de regimentos leais que não se somariam à intentona. Mas suas esperanças se esvaíram pouco depois disso, às oito e meia, quando o tenente-coronel Roberto Guillard leu a carta da Junta Militar numa cadeia de rádios de oposição. Sua voz vinha desde o quinto andar do Ministério de Defesa, taxativa:
Santiago, 11 de setembro de 1973.
Tendo presente:
Primeiro: a gravíssima crise econômica, social e moral que está destruindo o país;
Segundo: a incapacidade do governo para adotar as medidas que permitam deter o processo e desenvolvimento do caso;
Terceiro: o constante incremento dos grupos paramilitares, organizados e treinados pelos partidos políticos da Unidade Popular que levarão o Chile a uma inevitável guerra civil, as Forças Armadas e Carabineros do Chile declaram:
Primeiro: que o senhor presidente da república deve proceder a entrega imediata de seu alto cargo às Forças Armadas e Carabineros do Chile;
Segundo: que as Forças Armadas e o corpo de Carabineros do Chile estão unidos para iniciar a histórica e responsável missão de lutar pela liberação da Pátria do jugo marxista, e a restauração da ordem e da institucionalidade;
Terceiro: os trabalhadores do Chile podem ter a segurança de que as conquistas econômicas e sociais que alcançaram até hoje não sofrerão modificações no fundamental;
Quarto: a imprensa, rádios e canais de televisão favoráveis à Unidade Popular devem suspender suas atividades informativas a partir deste instante. Do contrário receberão castigo aéreo e terrestre.
Quinto: o povo de Santiago deve permanecer em suas casas a fim de evitar vítimas inocentes.
Entre os comandantes – verdadeiros ou autodenominados – que assinavam o documento, estava o nome de Augusto Pinochet. Sua presença na lista confirmava a adesão do Exército ao golpe – e a impossibilidade de o governo superá-lo.
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O plebiscito que não houve
O golpe aconteceu numa terça-feira. O final de semana anterior havia sido marcado por uma série de reuniões de Allende com lideranças políticas e militares, discutindo as alternativas para o futuro imediato do país. Os problemas do governo iam além da crise econômica impulsionada por seus próprios erros estratégicos e pelos boicotes norte-americanos. Também estavam presentes o terrorismo da ultradireita, as greves dos sindicatos de oposição, em especial o dos caminhoneiros, o desabastecimento do comércio e a inflação perene. As Forças Armadas vacilavam em suas convicções democráticas e os partidos de oposição – e boa parte da sociedade – já apoiavam uma intervenção militar, acreditando um retorno rápido à normalidade.
Dentro da Unidade Popular, duas teses se confrontavam para decidir a estratégia a seguir. Um lado, encabeçado pelos socialistas, desejava acelerar as mudanças mesmo que à revelia da legalidade, impondo antes de negociar. A outra corrente, defendida pelos comunistas e por Allende, queria chamar ao diálogo com os adversários, mesmo que isso arriscasse ceder em parte das mudanças levadas a cabo pelo governo nos últimos três anos. Depois de avançar rápido demais e ver a situação se tornar ingovernável, a ala moderada da UP se esforçou para buscar uma saída e evitar mais derramamento de sangue. Sentindo-se encurralado, o presidente idealizou uma alternativa drástica: um grande plebiscito nacional pela continuidade ou não de sua administração.
Parecia-lhe a maneira mais honrosa de deixar o cargo sem correr o risco de jogar o país numa quebra institucional. Salvador Allende sabia que seria derrotado. Desde sua vitória, em setembro de 1970, a UP só teve a maioria absoluta do eleitorado uma vez – em março de 1971, e mesmo assim somando as cidades de todo o país nos pleitos municipais, com uma margem estreitíssima. Aquele triunfo aproveitou o sucesso econômico dos meses iniciais do governo, mas não correspondia ao cenário real e dividido da política chilena. Allende mesmo fora eleito com apenas 36,6% dos votos, numa disputa rachada entre três nomes. Ainda assim, segundo seus assessores mais próximos, o presidente estava disposto a renunciar tão logo o plebiscito o derrotasse.
Os chilenos, porém, não saberiam de suas reais intenções até a década de 90: nunca houve tempo de convocar a votação pretendida por Allende. No domingo, 9 de setembro de 1973, o mandatário havia convocado dois generais para uma reunião decisiva em que comentou precisamente seu projeto de colocar nas mãos da cidadania os rumos do poder. Naquela manhã, Augusto Pinochet e Herman Brady – o homem que atenderia o telefonema presidencial no dia 11 – apresentaram-se no escritório do mandatário. Sem desconfiar que estava diante de dois dos principais conspiradores a favor do golpe, Allende confidenciou-lhes a intenção de chamar o povo às urnas. Surpreso, Pinochet afirmou:
– Isso muda toda a situação, presidente. Vai ser possível resolver o conflito com o Parlamento e isso aliviará a tensão.
O que aquela descoberta realmente mudou foi a data do golpe. Fazendo um eterno jogo duplo para se posicionar em público sempre ao lado do mais forte, Pinochet já estava convencido pela causa golpista, e concluiu que a sublevação precisaria ocorrer antes do discurso presidencial. Uma intervenção dos fardados perderia muito de seu apoio caso a população soubesse da proposta de uma saída democrática para o impasse político. O levante estava previsto para antes das Festas Pátrias de 18 e 19 de setembro, para evitar uma nova parada militar diante do presidente que se queria derrubar. Mas a insurreição provavelmente só aconteceria por volta do dia 14, quando ocorriam os ensaios para o desfile e um deslocamento de tropas até Santiago seria menos suspeito.
Municiado pelas novas informações, Pinochet se reuniu naquela mesma noite do dia 9 com Merino e Gustavo Leigh, comandante da Aeronáutica. Foi durante a festa de treze anos de sua filha, Jacqueline Pinochet, que o general e os demais conjurados chegaram ao acordo de antecipar o “Dia D” para às seis da manhã de 11 de setembro – cinco horas antes do momento em que Allende tomaria os microfones para anunciar seu plebiscito.
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Santiago como um grande quartel
Se aquele fosse um dia comum e a agenda do presidente se mantivesse inalterada, a manhã do 11 marcaria a abertura da exposição “Por la vida siempre”, na Universidade Técnica do Estado (UTE). Até o final do mês, em todos os polos da instituição pelo país, estavam previstas quinhentas exposições mais ou menos simultâneas, expondo os horrores de uma guerra civil – que se temia para o Chile naquele contexto de divisão. As “jornadas antifascistas”, como chegaram a ser chamadas, seriam inauguradas por Salvador Allende no campus da UTE de Santiago, no mesmo ato em que pretendia anunciar oficialmente a realização do plebiscito.
No entanto, desde a véspera aquela programação pouco a pouco ganhou contornos de hipótese improvável. O presidente passou a noite de 10 de setembro reunido em sua residência oficial com vários assessores, planejando o dia seguinte. Perto da meia-noite, a conversa foi interrompida por um telefonema com o aviso: agricultores residentes na beira da rodovia tinham testemunhado o deslocamento de vários caminhões militares, saídos das cidades de Los Andes e San Felipe com direção à capital. Apesar do movimento suspeito, Allende não ficou atarantado:
– Se eu fosse acreditar em todos os rumores que ouço, ficaria louco – disse aos colegas.
Quando o mandatário se deitou para uma breve noite de sono antes do dia agitado, já havia comprado a versão do Exército: os soldados enviados para Santiago ajudariam a reforçar a segurança da cidade na manhã seguinte, quando poderia haver protestos no centro. Em meio a tantos acontecimentos, o 11 de setembro previa um importante evento a mais: a Justiça realizaria a sessão em que suspenderia o foro privilegiado do senador Carlos Altamirano e do deputado Guillermo Garratón, membros da base aliada de Allende que haviam acolhido as denúncias de um grupo de marinheiros, os quais garantiam ter ouvido seus superiores falando de uma trama golpista. A Armada, evidentemente, negava tudo – e pretendia processar os políticos.
Nem Altamirano nem Garretón chegaram a ter sua imunidade parlamentar formalmente cancelada porque, no dia 11, o próprio conceito de parlamentar – e de imune – se tornou alienígena. Os magistrados não puderam se reunir para julgar a causa; os fatos atropelaram o processo e confirmaram que a Marinha estava mesmo planejando o golpe denunciado por seus recrutas e, principalmente, os mandatos dos dois políticos – e de todo o Congresso – logo seriam anulados pelo novo regime. O Parlamento chileno foi dissolvido por um decreto autoritário da Junta Militar e permaneceu fechado até 1990, na volta à democracia.
Allende começou a tomar conhecimento de tudo o que estava passando no país graças àquele telefonema do início da manhã, mas antes disso as tropas já estavam dando os primeiros passos. No campus da UTE, onde deveria acontecer o ato presidencial, uma patrulha militar invadiu a rádio universitária e destruiu suas instalações, impedindo-a de funcionar. Este seria o primeiro atentado contra uma emissora favorável ao governo: ao longo da manhã do golpe, as poucas rádios que ainda colocavam os pronunciamentos de Allende no ar foram silenciadas rapidamente, com suas torres bombardeadas pelos aviões militares.
O presidente começou o dia falando em três rádios principais – a Corporación, a Portales e a Magallanes – e, na altura de seu último discurso, só uma delas ainda estaria operando. As demais emissoras do país ainda no ar ficaram tocando intermináveis marchas militares, interrompidas apenas pelos decretos emitidos ordinariamente pela Junta: ameaças de fuzilar no ato quem tentasse resistir ao golpe, recomendações para que o povo não saísse às ruas, listas de nomes de “extremistas” que deviam se entregar, ultimatos ao presidente e aos companheiros que insistiam em resistir no palácio.
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Eu não vou renunciar”
A resistência de La Moneda durou a manhã inteira. No início do dia, o prédio ainda era guarnecido por um grupo de Carabineros, com a presença do próprio diretor da corporação, o general José Sepúlveda. No entanto, essa presença não durou muito: os soldados desertaram quando o primeiro decreto da Junta veio ao ar e o desconhecido César Mendoza assinou como comandante da instituição. A exemplo do que Merino fizera na Armada, Mendoza também deu um golpe interno nos Carabineros: no seu caso, passou a perna em seis generais mais antigos e virou diretor “de fato” ao assumir o controle da central de telecomunicações da polícia, de onde pôde dar ordens ao país inteiro.
Sem suporte militar de qualquer tipo, os defensores do palácio resistiram usando as armas abandonadas pelos próprios Carabineros, além do equipamento mantido pela escolta presidencial. Tratava-se, evidentemente, de uma resistência simbólica: menos de uma centena de homens parcamente armados contra todo o aparato militar do Chile. Com o tempo correndo perigosamente contra, Allende entrou em contato com a última emissora de rádio aliada ainda no ar. Às 9:10, os chilenos sintonizados na Rádio Magallanes puderam ouvir, entre nuvens de estática, o último discurso do presidente:
Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei me dirigir a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Portales e da Rádio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para aqueles que traíram o juramento que fizeram: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Armada, mais o senhor Mendoza, general rasteiro que ainda ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou Diretor Geral de Carabineros.
Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: eu não vou renunciar.
Colocado em um transite histórico, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser segada definitivamente. Têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detêm os processos sociais, nem com o crime, nem com a força.
A história é nossa e a fazem os povos.
Trabalhadores da minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que apenas foi intérprete de grandes desejos de justiça. Que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez. Neste momento definitivo, o último em que eu poderei me dirigir a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação, criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição. [...]
Seguramente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranquilo de minha voz não chegará vocês. Não importa. Seguirão me ouvindo. Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos minha lembrança será a de um homem digno que foi leal com a Pátria.
O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve se deixar arrasar nem se crivar de balas, mas tampouco deve se humilhar.
Trabalhadores de minha Pátria: tenho fé no Chile e em seu destino. Superarão outros homens este momento gris e amargo em que a traição pretende se impor. Sigam vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre para construir uma sociedade melhor.
Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!
Estas são minhas últimas palavras, e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a tradição.
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O cerco final a La Moneda
Após a despedida de Allende, La Moneda se viu rodeada por tanques. No restante da manhã, a Junta reiterou suas ofertas para que o presidente renunciasse ao cargo para ter sua integridade física mantida. Os militares prometiam deixar um avião à disposição para levá-lo a qualquer parte em que desejasse se asilar. Salvador Allende, porém, não aceitou. Em 1985, vazaram gravações das conversas internas dos comandantes, em que Pinochet diz textualmente:
– Mantém-se o oferecimento de retirá-lo do país… e o avião cai, viejo, durante o voo – ao fundo, os colegas do general gargalhavam.
O bombardeio aéreo do palácio atrasou por quase uma hora. Prometido para as onze da manhã, teve seu início apenas às 11:52, quando foi disparado o primeiro dos 79 mísseis a saírem dos caças Hawker Hunter. Antes disso, a residência presidencial, localizada em outro ponto de Santiago, também havia sofrido ataque aéreo. Lá estava a primeira-dama, Hortensia Bussi, que conseguiu fugir escondida num automóvel dirigido por um guarda-costas.
As bombas caíram sobre La Moneda por cerca de 25 minutos. Depois, aproveitando-se dos rombos abertos no palácio, helicópteros se aproximaram e lançaram granadas de gás lacrimogêneo. Apesar de toda a violência do ataque, o 11 de setembro deixaria somente duas vítimas na sede do governo chileno: dois suicídios. O primeiro foi o jornalista Augusto Olivares, diretor da Televisão Nacional, enquanto o bombardeio acontecia. O segundo, apesar das controvérsias que essa afirmação gerou nessas quatro décadas, foi Salvador Allende.
Por muitos anos a versão do suicídio do presidente foi combatida, inclusive por outros defensores do palácio, que garantiam ter presenciado uma troca de tiros. Nos tempos de resistência à ditadura, parecia mais útil a imagem do homem que morrera lutando do que o suicídio honroso de alguém que se recusou a cair nas mãos dos inimigos. Fidel Castro endossou essa versão num discurso que deu em Havana no fim daquele setembro sombrio, e mais tarde seria a vez de Gabriel García Márquez dar ainda mais força à lenda, com um texto baseado em relatos de testemunhas em que confirmava a ocorrência de um tiroteio entre o presidente e os homens do general Javier Palacios – que comandou a invasão ao prédio.
A cada aniversário do golpe, novos livros tentando comprovar “a verdadeira história” por trás das horas finais de Salvador Allende reconstroem as versões, e ainda hoje são escritos textos reforçando a tese do tiroteio. No entanto, na obra mais exaustiva a respeito do assunto – El último día de Salvador Allende, de 2008 –, o médico Óscar Soto confirma de forma convicta o suicídio. Tal sustentação também veio de todas as autópsias encomendadas periodicamente pelos governos chilenos após a volta à democracia.
Cardiologista do presidente, Soto esteve no palácio naquele dia e participou de reconstituições com outros colegas da defesa. De acordo com seu relato, por volta da uma e meia da tarde e já sem chances de resistir, Allende havia pedido que os colegas se rendessem, saindo pela porta lateral do prédio, que dá na rua Morandé. Anunciou que seria o último da fila, mas aproveitou a confusão e se retirou no Salão da Independência, onde tirou a própria vida com o AK-47 que lhe havia sido presenteado por Fidel, anos antes. O tiro foi ouvido das escadarias, seguido pelo grito enlouquecido de Enrique Huerta, responsável pela manutenção do palácio:
– Allende morreu! Viva o Chile!
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Longe do palácio, as outras vítimas de La Moneda
Huerta chegou a recolher a arma do tapete para acompanhar a imolação do mandatário, mas foi convencido de que seu sacrifício seria inútil pelo médico Héctor Pincheira. Os dois decidiram respeitar a última ordem de Allende e saíram do prédio pela porta lateral, onde – como todos os demais – foram imediatamente obrigados a se deitar de bruços no chão. A imagem ficou famosa: correram o mundo os registros dos defensores de La Moneda jogados na rua diante das lagartas ameaçadoras de um tanque de guerra.
Ninguém morreu no asfalto de Morandé, mas nos dias seguintes muitos outros nomes se somaram à listagem de vítimas do palácio, que inicialmente contava apenas com Augusto Olivares e Salvador Allende. Dos 56 prisioneiros capturados com vida, 24 foram vítimas de execuções sumárias ou se tornariam desaparecidos políticos, inclusive Héctor Pincheira e Enrique Huerta. A repressão logo se abateu por todo o país, acompanhada pela imposição de um toque de recolher que vigorou até o dia 13. O país já era outro quando se pôde voltar às ruas. Sua posição no cenário político internacional, também: alguns rapidamente criticaram a brutalidade do novo regime, outros silenciaram. A grande maioria, mais cedo ou mais tarde, lembrou dos acordos comerciais para ignorar as violações de direitos humanos.
Mas houve uma nação que se antecipou às demais. Alguns anos mais tarde, Augusto Pinochet lançou um livro de memórias chamado El día decisivo, sobre os preparativos do golpe. Montado como se fosse uma entrevista, com perguntas e respostas, o volume inclui a seguinte interrogação:
Pergunta: Nesse dia [11 de setembro], algum país reconheceu o novo governo do Chile?
Pinochet: Sim. Nessa tarde eu me encontrava no escritório do Diretor da Escola Militar, quando chegou o Embaixador do Brasil no Chile, senhor Câmara Canto, para dizer que seu país reconhecia o novo governo do Chile, nobre gesto desse país irmãos que os chilenos nunca esqueceremos.
O Brasil, que havia dado apoio de bastidores ao golpe, não sentiu qualquer constrangimento em assumir a trama nas horas seguintes à morte de Allende. O governo Médici seria o primeiro em todo o mundo a emprestar dinheiro para Pinochet começar a “reconstrução” do Chile, e logo autorizou o envio de medicamentos, alimentos e combustíveis para Santiago. Também mandou um destacamento de “especialistas em interrogatórios”, com a missão de ensinar aos militares transandinos as técnicas de tortura mais eficientes empregadas nos porões brasileiros. Era o início de uma frutífera relação entre as duas ditaduras.
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