Total de visualizações de página

30 de dez. de 2012

Cidadania x Escravidão



Esse post reproduz um trecho do livro de José Murilo de Carvalho que discorre sobre a construção da cidadania em um Brasil escravocrata e latifundiário. Eu já reproduzi alguns trechos desse livro em um post anterior.
Segue o trecho selecionado:

Escravidão e grande propriedade não constituíam ambiente favorável à formação de futuros cidadãos. Os escravos não eram cidadãos, não tinham os direitos civis básicos à integridade física (podiam ser espancados), à liberdade e, em casos extremos, à própria vida, já que a lei os considerava propriedade do senhor, equiparando-os a animais. Entre escravos e senhores, existia uma população legalmente livre, mas a que faltavam quase todas as condições para o exercício dos direitos civis, sobretudo a educação. Ela dependia dos grandes proprietários para morar, trabalhar e defender-se contra o arbítrio do governo e de outros proprietários. Os que fugiam para o interior do país viviam isolados de toda convivência social, transformando-se, eventualmente, eles próprios em grandes proprietários.

Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram, sem dúvidas, livres, votavam e eram votados nas eleições municipais. Eram os "homens bons" do período colonial. Faltava-lhes, no entanto, o próprio sentido da cidadania, a noção da igualdade de todos perante a lei. Eram simples potentados que absorviam parte das funções do Estado, sobretudo as funções judiciárias. Em suas mãos, a justiça, que, como vimos, é a principal garantia dos direitos civis, tornava-se simples instrumento do poder pessoal. O poder do governo terminava na porteira das grandes fazendas.

A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atingia os locais mais afastados das cidades, ou porque sofria a oposição da justiça privada dos grandes proprietários, ou porque não tinha autonomia perante as autoridades executivas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrupção dos magistrados. Muitas causas tnham que ser decididas em Lisboa, consumindo tempo e recursos fora do alcance da maioria da população. O cidadão comum ou recorria à proteção dos grandes proprietários, ou ficava à mercê do arbítrio dos mais fortes. Mulheres e escravos estavam sob a jurisdição privada dos senhores, não tinham acesso à justiça para se defenderem. Aos escravos só restava o recurso da fuga e da formação de quilombos. Recurso precário porque os quilombos eram sistematicamente combatidos e exterminados por tropas do governo ou de particulares contratados pelo governo.

Trecho de: CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 21-22.

25 de dez. de 2012

FELIZ NATAL!!!

Finalmente, férias!!!
Blogueira terminou seu TCC, apresentou e já está a um passo da formatura. Só felicidade nesse final de ano tão turbulento.
Como promessa de Natal/Ano Novo fica a ideia de atualizar de forma mais contínua este blog. Por agora, deixo essa mensagem do Leonardo Boff sobre o Natal para não perder a oportunidade da data.

FELIZ NATAL A TODOS!!! UM 2013 DE MUITA HISTÓRIA!!!! (pra não perder a piada clichê)

Texto retirado daqui.

Natal: um mito cristão verdadeiro

Há poucas semanas, com pompa e circunstância, o atual Papa mostrou-se novamente teólogo ao lançar um livro: “A Infância de Jesus”. Apresentou a versão clássica e tradicional que vê naqueles relatos idílicos uma narrativa histórica. O livro deixou os teólogos perplexos, pois a exegese bíblica sobre estes textos, já há pelos menos 50 anos, mostrou que não se trata propriamente de um relato histórico, mas de alta e refinada teologia, elaborada pelos evangelistas Mateus e Lucas (Marcos e João nada falam da infância de Jesus) para provar que Jesus era de fato o Messias, o filho de Davi e o Filho de Deus.

Para esse fim, recorrem a gêneros literários para apresentar uma mensagem, transmitida como se fossem histórias mas que de fato não passam de recursos literários, como, por exemplo, os magos do Oriente (representando os pagãos e os sábios), os pastores (os mais pobres e considerados pecadores por estarem às voltas com animais que os tornavam impuros), a Estrela e o anjos (mostrando o caráter divino de Jesus), Belém que não seria uma referência geográfica mas teria um significado teológico: o lugar onde, segundo as profecias, nasceria o Messias, diferente de Nazaré, totalmente desconhecida, onde Jesus provavelmente teria nascido de fato. E assim outros tópicos como detalhadamente analisei em meu Jesus Cristo Libertador (capitulo VIII).Mas tudo isso não é muito importante porque exige conhecimentos muito especializados.

Importante mesmo é compreender que face aos relatos tão comovedores do Natal estamos diante de um grandioso mito, entendido positivamente como os antropólogos o fazem: o mito como a transmissão de uma verdade tão profunda que somente a linguagem mítica, figurada e simbólica é adequada para expressá-la. É exatamente o que o mito pretende. O mito é verdadeiro quando o sentido que quer transmitir é verdadeiro e ilumina toda a comunidade. Assim o Natal é um mito cristão cheio de verdade, da proximidade de Deus e da familiaridade.

Nós hoje usamos outros mitos para mostrar a relevância de Jesus. Para mim é de grande significação um mito antigo, que a Igreja aproveitou na liturgia do Natal para revelar a comoção cósmica face ao nascimento de Cristo. Ai se diz:

"Quando a noite estava no meio de seu curso e fazia-se profundo silêncio: então as folhas que farfalhavam pararam como mortas; então o vento que sussurrava, ficou parado no ar; então o galo que cantava parou no meio de seu canto; então as águas do riacho que corriam, se paralisaram; então as ovelhas que pastavam, ficaram imóveis; então o pastor que erguia o cajado para golpeá-las, ficou petrificado; então nesse momento tudo parou, tudo silenciou, tudo se suspendeu porque nasceu Jesus, o salvador da humanidade e do universo”.

O Natal nos quer comunicar que Deus não é aquela figura severa e de olhos penetrantes para perscrutar nossas vidas. Não. Ele surge como uma criança. Ela não julga; só quer receber carinho e brincar.

Eis que do presépio veio uma voz que me sussurrou: ”Oh, criatura humana, por que tens medo de Deus? Ele não se fez criança? Não vês que sua mãe enfaixou seus bracinhos e seu corpinho frágil? Não percebes que ela não ameaça ninguém? Nem condena ninguém? Não escutas o seu chorinho doce? Mais que ajudar, essa criança precisa ser ajudado e coberta de carinho porque sozinha não pode fazer nada; não sabes que ela é o Deus-conosco-como nós?”

E ai já não pensamos mais mas damos lugar ao coração que sente, se compadece e ama. Poderíamos fazer outra coisa diante desta Criança, sabendo que é o Deus humanado?

Talvez poucos escreveram tão bem sobre o Natal, sobre Jesus Criança, que o poeta português Fernando Pessoa: ”Ele é a eterna criança, o Deus que faltava. Ele é o divino que sorri e que brinca. É a criança tão humana que é divina”.

Mais tarde transformaram o Menino Jesus no São Nicolau, no Santa Claus e, por fim, no Papai Noel. Pouco importam os nomes, porque no fundo, o espírito de bondade, de proximidade e de Presente divino está, de alguma forma, lá.

Acertado foi o editorialista Francis Church do jornal The New York Sun de 1897 respondendo a uma menina de 8 anos, Virgínia, que lhe escreveu: “Prezado Editor: me diga de verdade, o Papai Noel existe?” E ele sabiamente respondeu:

“Sim, Virgínia, Papai Noel existe. Isto é tão certo quanto a existência do amor, da generosidade e da devoção. E você sabe que tudo isto existe de verdade, trazendo mais beleza e alegria à nossa vida. Como seria triste o mundo se não houvesse o Papai Noel! Seria tão triste quanto não existir Virgínias como você. Não haveria fé das crianças, nem a poesia e a fantasia que tornam nossa existência leve e bonita. Mas para isso temos que aprender a ver com os olhos do coração e do amor. Então percebemos que não há nenhum sinal de que o Papai Noel não exista. Se existe o Papai Noel? Graças a Deus ele vive e viverá sempre que houver crianças grandes e pequenas que aprenderam a ver com os olhos do coração”

Nesta festa, tentemos a olhar com os olhos do coração, pois todos fomos educados a olhar com os olhos da razão. Por isso somos frios. Hoje vamos resgatar os direitos do coração que é caloroso: deixar-nos comover com nossas crianças, permitir que sonhem e nos encher de estremecimento diante da Divina Criança que sentiu prazer e alegria ao decidir ser um de nós pela encarnação.

PS. Desejo aos leitores e leitoras de meu blog um Natal de esperança pois precisamos dela no meio de um mundo em voo cego rumo a um futuro incerto. Mas uma Estrela como a de Belém nos mostrará um caminho salvador. E chamaram Jesus de Emanuel, o Deus que caminho conosco:lb

24 de nov. de 2012

Israel x Palestina



O texto de hoje é sobre o mais recente conflito entre Israel e a Palestina sobre a posse de um território chamado faixa de Gaza. Quem escreveu esse texto foi Eduardo Galeano, autor que eu adoro. O texto foi retirado daqui.



Quem deu a Israel o direito de negar todos os direitos?



Por Eduardo Galeano
Para justificar-se, o terrorismo de estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnificina de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los.
São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que foram palestinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há muitos anos, o direito à existência da Palestina.Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma armadilha sem saída, desde que o Hamas ganhou limpamente as eleições em 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e, desde então, viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.
Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel está apagando-a do mapa. Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a pilhagem, em legítima defesa.
Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel devorou outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. O apetite devorador se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu, e pelo pânico que geram os palestinos à espreita.
Israel é o país que jamais cumpre as recomendações nem as resoluções das Nações Unidas, que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que burla as leis internacionais, e é também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros.
Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente ao País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico pôde arrasar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica uma apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde provém da potência manda chuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?
O exército israelense, o mais moderno e sofisticado mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de “danos colaterais”, segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, de cada dez “danos colaterais”, três são crianças. E somam aos milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando com êxito nesta operação de limpeza étnica.

E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense. Gente perigosa, adverte outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos convidam a crer que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.
A chamada “comunidade internacional”, existe? É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos adotam quando fazem teatro?
Diante da tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial se ilumina uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas, rendem tributo à sagrada impunidade.
Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos. A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama alguma que outra lágrima, enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caçada de judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinas, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antisemitas. Eles estão pagando, com sangue constante e sonoro, uma conta alheia.




5 de nov. de 2012

Escravidão negra no Brasil

Mês da Consciência Negra, utilizarei um trecho do historiador José Murilo de Carvalho. Todas as imagens que aparecem são do pintor francês Jean Baptiste Debret.


O fator mais negativo para a cidadania foi a escravidão. Os escravos começaram a ser importados na segunda metade de século XVI. A importação continuou ininterrupta até 1850, 28 anos após a independência. Calcula-se que até 1822 tenham sido introduzidos na colônia cerca de 3 milhões de escravos. Na época da independência, numa população de cerca de 5 milhões, incluindo uns 800 mil índios, havia mais de 1 milhão de escravos.


Embora concentrados nas áreas de grande agricultura exportadora e de mineração, havia escravos em todas as atividades, inclusive urbanas. Nas cidades eles exerciam várias tarefas dentro das casas e na rua. Nas casas, as escravas faziam o serviço doméstico, amamentavam os filhos das sinhás, satisfaziam a concupiscência dos senhores. Os filhos dos escravos faziam pequenos trabalhos e serviam de montaria nos brinquedos dos sinhozinhos.


Na rua, trabalhavam para os senhores ou eram por eles alugados. Em muitos casos, eram a única fonte de renda de viúvas. Trabalhavam de carregadores, vendedores, artesãos, barbeiros, prostitutas. Alguns eram alugados para mendigar. Toda pessoa com algum recurso possuía um ou mais escravos. O Estado, os funcionários públicos, as ordens religiosas, os padres, todos eram proprietários de escravos. Era tão grande a força da escravidão que os próprios libertos, uma vez livres, adquiriam escravos. A escravidão penetrava em todas as classes, em todos os lugares, em todos os desvãos da sociedade: a sociedade colonial era escravista de alto a baixo.



Trecho de: CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 19-20.

31 de out. de 2012

Imagem do dia


Novembro é o mês da consciência negra, com o dia 20 destinado para Zumbi dos Palmares e sua imagem de resistência e luta.

Novembro também é o mês derradeiro do TCC da dona do blog. Prometo que depois darei mais atenção ao meu tão abandonado blog =/ Ossos do ofício de estudante...

Enquanto eu não termino minhas tarefas, deixo uma imagem linda sobre a África e o Brasil.



2 de out. de 2012

Notícia triste da semana: morre Eric Hobsbawm

Eric Hobsbawm (1917-2012)
Eric Hobsbawm é leitura obrigatória para qualquer estudante de História. Sua forma de escrever é clara, com umas pitadas de ironia e bom-humor, demonstrando maestria de quem dedicou décadas para o estudo da História. Juntamente com um grupo de historiadores marxistas britânicos, mudou a forma de analisar a História a partir dos conceitos e teorias deixadas por Marx. Morreu ontem, aos 95 anos, deixando um legado que servirá para muitos outros estudos espalhados pelo mundo todo.

Esse texto foi retirado do Café História e apresenta um pouco mais sobre a vida e a obra do historiador.


Eric Hobsbawm: vida e obra de um historiador singular
Conheça mais sobre a trabalho e a trajetória de um dos mais importantes historiadores britânicos do século XX.
Um giro pelo noticiário nacional e internacional neste dois de outubro de 2012 evidencia o enorme reconhecimento que Eric Hobsbawm conquistou ao longo de quase oito décadas dedicadas ao estudo da história. A morte do historiador britânico, ocorrida ontem, na Inglaterra, aos 95 anos, foi capa dos principais jornais do mundo. Hobsbawm, que estava internado no Royal Free Hospital, em Londres, morreu em decorrência de uma pneumonia, deixando esposa, três filhos, sete netos, um bisneto e milhões de admiradores pelo mundo, muitos dos quais brasileiros. Em sua homenagem, o Café História preparou o presente texto, no qual lembramos sua trajetória, suas várias identidades e a recepção de sua obra, citada em um número incalculável de trabalhos que abordam a história mundial do século XIX e XX.

Hobsbawm: o historiador

Eric Hobsbawm esteve certamente entre os historiadores britânicos mais importantes e influentes do século XX. Como docente, foi um profissional dedicado e fiel. Atuou praticamente toda a vida na mesma instituição de ensino, o Birkbeck College, em Londres, onde foi admitido em 1947. Em termos historiográficos, esteve ao lado de nomes como E.P. Thompson, Raymond Williams e Christopher Hill, uma bem sucedida geração de historiadores de esquerda que rompeu com uma leitura ortodoxa do marxismo, excessivamente economista, determinista e desprovida de conexão com a prática política. Hobsbawm não fez parte diretamente, mas também acompanhou a reestruturação dos historiadores de esquerda em torno da revista “New Left”, na década de 1950, importantíssima no contexto político e intelectual do pós-guerra. Em seus textos, mostrou sempre uma incrível erudição. O historiador Christopher Hill disse certa vez, brincando, que nada se podia ensinar ao colega Eric Hobsbawm. “Ele já sabia de tudo”.
No Brasil, “A Era dos Extremos – O Breve Século XX: 1914 -1991” foi notadamente o seu livro mais conhecido. Editado pela Companhia das Letras, o título vendeu incríveis 227 mil exemplares, tornando-se um verdadeiro best-seller na área. Mas as suas principais contribuições à historiografia estão mesmo em obras anteriores, tais como “A Invenção das Tradições” e “Nações e Nacionalismos desde 1870”, nas quais analisa a complexa estruturação dos Estados nacionalistas do século XIX, e “História Social do Jazz” e “Mundos do Trabalho: Novos Estudos Sobre a História Operária”, onde o autor explora a trajetória do mundo do trabalho a partir não só da ótica econômica, mas também do social. É dele também a série composta pelos livros "A Era das Revoluções", "A Era do Capital" e "A Era dos Impérios", que fazem companhia ao já mencionado "A Era dos Extremos". Seu último livro, "Como mudar o mundo", uma coleção de ensaios, foi publicado em 2011 no país pela Companhia das Letras.
Uma característica presente em quase todas as obras de Hobsbawm é a acessibilidade da narrativa. Além de bom pesquisador, o historiador tinha uma boa escrita, sabendo alcançar o grande público sem abrir mão da profundidade de suas análises históricas. Afonso Carlos Marques dos Santos, antigo professor de Teoria de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, falecido em 2004, fez certa vez uma síntese bastante original da história feita por Hobsbawm, destacando uma outra característica do historiador inglês - a coragem para desafiar paradigmas do marxismo:
- “É evidente que Hobsbawm orientou a sua construção historiográfica a partir de uma ambição totalizante, muito cara ao marxismo, mas soube fazê-lo com sensibilidade, ampla cultura geral e abertura para novas formulações oriundas de outras tendências historiográficas. Abertura que deve ter desagradado àqueles que, do lado de cá do Atlântico Sul, vivem incomodados com o que chamam “modismos pós-modernos” ou “desvios irracionalistas” das temáticas clássicas da ortodoxia marxista. Na introdução de A Era dos Impérios Hobsbawm usou como epígrafe uma passagem de Pierre Nora em Les Lieux de Mémoire, onde a história aparece como “a sempre incompleta e problemática construção do que já não existe”. Nesta citação, Nora, ao demarcar as distinções entre memória e história também afirma: “A memória sempre pertence a nossa época e está intimamente ligada ao presente eterno; a história é uma representação do passado”. Hobsbawm , ao problematizar o período 1875-1914, começa pela própria história da sua família valendo-se da memória para motivar a penetração num tempo que se fecha na altura do seu próprio nascimento. Recorre, portanto, a uma dimensão biográfica e individualizada da existência humana para falar de um tempo socialmente repartido. E é curioso que tenha lançado mão de Pierre Nora, uma personalidade central no campo da editoração de obras históricas na França. A heterodoxia de Hobsbawm certamente não deve ter agradado àqueles que, mesmo sem muita familiaridade com a produção historiográfica internacional, apontam de forma condenatória para o que seria a “nossa francofilia” no campo dos estudos históricos”. (leia essa análise, na íntegra, clicando aqui).
Hobsbawm: o intelectual
Além de historiador, Hobsbawm tinha ainda uma faceta bastante rara atualmente entre profissionais da área: era um intelectual público ativo. Na Inglaterra e no exterior, Hobsbawm sempre foi figura fácil em artigos, ensaios e entrevistas, falando de algum acontecimento do momento. Nos atentados de 11 de setembro, por exemplo, foi um duro critico das explicações de “choque de culturas”. Para Hobsbawm, o terrorismo deveria ser entendido a partir de uma relação de dominação e exclusão promovida pelo Ocidente ao longo dois últimos dois séculos. Foi ainda neste âmbito conselheiro de figuras importantes da política mundial, com Luís Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil, e participou com frequência de eventos públicos em todo o mundo. Esteve pela última vez no Brasil em 2003, quando foi uma das principais atrações da Festa Literária de Paraty (FLIP).
A presença costumeira no espaço público talvez se explique pela própria experiência de vida do historiador. Nascido em Alexandria, Egito, no ano de 1917, Hobsbawm foi testemunha daquilo que ele chamou do “breve século XX”, um século bastante acelerado pela enormidade de acontecimentos impactantes em termos políticos e culturais. Filho de pai britânico e mãe austríaca, viveu muitos cenários e situações deste período de bem perto. Cresceu em Viena e, após a morte dos pais, judeus, mudou-se para Berlim. Após testemunhar a ascensão do nazismo de Hitler, mudou-se com o tio e a irmã para Londres. Acompanhou, então, a Segunda Guerra Mundial, a crise europeia, a Guerra Fria e toda uma gama de eventos históricos que transformaram o planeta.
Hobsbawm - como todo grande pensador - também acumulou críticas ao longo da vida. A maior delas se refere a sua fidelidade ao Partido Comunista (PC), inabalável mesmo durante a Invasão Soviética à Hungria, em 1956. Permaneceu membro do PC até a sua desintegração, em 1989. Outra crítica também comum a Hobsbawm se refere a sua relação com o stalinismo. Para o professor de história da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Ricardo da Costa, Hobsbawm omitiu em suas obras muitas informações sobre os horrores cometido em nome do marxismo-leninismo soviético. (leia esta crítica, na íntegra, aqui).
Hobsbawm para os historiadores brasileiros
Procurando entender um pouco mais da relevância de Eric Hobsbawm no Brasil – um dos países onde era mais lido, além da Itália – o Café História conversou com algumas pessoas que vivem o cotidiano acadêmico no país. Nossa ideia era identificar como Hobsbawm se tornou a referência entre historiadores brasileiros que é hoje, mesmo quando objeto de críticas.
Monica Grin, professora de história contemporânea do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ) desde 1997, explicou ao Café que a narrativa de Hobsbawm tem o mérito de não só ter popularizado e historicizado o marxismo para legiões de estudantes, como também se tornou indissociável da própria história contemporânea. Grin sublinhou ainda que durante muito tempo Hobsbawm “frequentou” os seus programas de curso na UFRJ, sendo lido com grande prazer pelos alunos:
- Adotei em diversas conjunturas os livros de Hobsbawm. Usei “História do Marxismo - 12 volumes” , “A Era das Revoluções – 1789-1848”, A Era do Capital - 1848-1875” e “A Era dos Impérios - 1875-1914” quando se tratava de aulas para a graduação sobre a emergência do marxismo no século XIX, sobre os desdobramentos sociais da chamada Revolução Industrial e sobre os Impérios e Imperialismos. Não raro, comparava Hobsbawm com Thompson e Polanyi para compreender a história social de um perspectiva marxista, conforme a historiografia inglesa marxista; com Hannah Arendt para discutir imperialismo. Em outras situações, o tema do Estado nação e do nacionalismo me fazia visitá-lo, quer em “Nações e Nacionalismo”, quer em seu livro com Trevor-Roper, “A Invenção da Tradição”. Neste caso também não me furtava às comparações com Gellner, Benedict Anderson, Charles Tilly, Anthony Smith. Cheguei a usar também alguns de seu ensaios em historiografia que saíram em “Sobre história”.
Maria Paula Araújo, também professora da UFRJ, revela uma memória bastante interessante, que remete a um jantar que ela e mais três amigas tiveram com o historiador inglês nos anos 1980, no Rio de Janeiro, na ocasião do lançamento de um de seus livros no Brasil:
- Eu tenho orgulho de dizer que tenho na minha estante quase todos os seus livros. E também tenho na memória uma noite em que eu, Helena Maria Gasparian, Adriana Benedikt e Vera Paiva, nós quatro iniciando o mestrado (acho que isso foi em 1983 ou 84) levamos Hobsbawm para jantar no Lamas (tradicional restaurante do Rio de Janeiro). Ele era um dos autores exclusivos da Editora Paz e Terra (do Fernando Gasparian, pai da Helena) e nos coube esta tarefa - levar Hobsbawm e a esposa para jantar. Na época nós achávamos que o Lamas era um restaurante quase sofisticado (estávamos acostumadas com o Jobi, o Diagonal e a Pizaria Guanabara). Foi uma noite inesquecível. Hobsbawm deu palpite nos nossos trabalhos, até no da Vera, que era sobre a "Lilith" (a primeira mulher de Adão, insubmissa e devassa, que foi banida do Paraíso e da Bíblia).
Maria Paula completou ainda dizendo que embora o encontro tenha se dado há quase 30 anos, não esquece da generalidade e a versatilidade de Hobsbawm, disposto a conhecer e a opinar sobre o trabalho daqueles quatro mestrandas brasileiras de vinte e poucos anos.
Já Zózimo Trabuco, professor de História do Brasil da Universidade Federal de Feira de Santana, contou ao Café que acredita ter começado a ler os textos de Hobsbawm como a maioria dos seus leitores: a partir das “Eras”. “O modo como relacionava as ideias e as práticas sociais às mudanças políticas e econômicas e a visão comparativa dessas relações em diferentes lugares dentro de uma mesma temporalidade sempre me fascinou”, diz o professor. Sobre a história feita de Hobsbawm, Trabuco diz também:
- Acho que Hobsbawm representou um modo de compreender a história e o papel do intelectual que se confundem com o conjunto de sua obra e os tempos históricos aos quais ele se dedicou a analisar: grandes sínteses, visão global ou cosmopolita das transformações do mundo, senso de responsabilidade política da pesquisa e da comunicação do conhecimento histórico, e apesar - ou em função - das opções políticas pessoais que fez ao longo da vida, um rigor teórico e metodológico que o fazia ter o compromisso ético de reavaliar ideologias e alternativas políticas que marcaram sua trajetória como intelectual público. Neste sentido, o "Breve Século XX" foi em Hobsbawm o longo século de um modo de fazer História, foi a "Era de Hobsbawm".
Mas não é só entre professores que Hobsbawm é referência. Entre estudantes de história também. João Teófilo, estudante do nono período do curso de história da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA), na cidade de Sobral, disse que ficou muito triste quando soube da morte do historiador, por quem tinha grande admiração. Teófilo explicou que os textos de Hobsbawm estavam presentes nos cursos de sua faculdade e revelou porque gosta tanto dos textos do autor:
- Os escritos de Hobsbawm, embora de uma linguagem complexa, são de uma riqueza ímpar, uma vez que a maestria do historiador, de uma erudição invejável, mais que proporcionar um entendimento inteligente que nos ajuda a refletir sobre a relação do homem com o tempo-espaço, serve de exemplo para uma escrita exemplar da História. As leituras de Hobsbawm, a exemplo de “A Era do Extremos”, deixam claro que, não por acaso, ele é um dos maiores historiadores.

17 de set. de 2012

Racismo cotidiano

Esse post foi retirado do blog Escreva Lola Escreva e discute uma cena de racismo presenciada por uma das leitoras do blog. Racismo velado, mas muito claro para quem visualizava a cena.

GUEST POST: RACISMO NA CABELEIREIRA

Cecilia é uma cientista com um cabelão loiro, crespo, que vai até o joelho. Esta foto que ela me enviou é de quatro anos atrás. Hoje seu cabelo está muito mais longo e, como dá pra imaginar, exige muito tempo pra cuidar. 
Bom, o guest post em que o Robson falava do nosso padrão de beleza racista inspirou Cecilia a relatar algo que tinha acabado de acontecer com ela. Quer dizer, não com ela -- ela foi mais testemunha que vítima da história. A vítima? Todos nós. Uma sociedade só tem a perder quando é racista. Ainda mais quando o racismo está enraizado dentro de nós.

Este post caiu como uma luva para uma situação horrível que vivi ontem, e que gostaria de desabafar. Não quero me expor nem expor o nome do salão cabeleireiro, já que vou relatar um crime do qual não tenho nenhuma prova (além do meu testemunho). Não quero sofrer retaliação ou mesmo gerar uma onda de ódio caso a pessoa seja reconhecida. 
Moro numa cidade no interior de São Paulo. Meus pais são imigrantes europeus, o que me garantiu uma pele branca, olhos claros e cabelos loiros. 
Não sou exatamente vaidosa, mas gosto muito do meu cabelo. Muito mesmo -- ele tem mais ou menos 1,5m de comprimento, e o cultivo com muito carinho! 
Hoje resolvi experimentar um salão novo que abriu aqui perto de casa para fazer uma hidratação (faço mensalmente). Geralmente quando chego no salão já vou logo avisando que meu cabelo é difícil -- é fino, embaraça muito fácil. E que topo pagar mais por causa disso, sei que é quase tortura tratar dele. 
Como sempre, fui muito bem tratada; a moça, que é dona do salão, disse que não cobraria a mais por causa do comprimento (R$ 150 para cabelos longos) e foi logo puxando papo. Disse que iria até me fazer desconto, porque o movimento tá fraco agora em agosto, e ela está com dificuldades para pagar as contas, muitos horários vazios, naquele dia mesmo ela não tinha mais ninguém, e ainda era 13h. 
Começou o serviço. Primeiro, tentou me convencer a fazer escova progressiva (meu cabelo não é liso, é ondulado). Não, obrigada, gosto dele do jeito que é. Depois de insistir um pouco, começou a me oferecer fazer luzes, que ficaria muito bom. Novamente, não, obrigada, gosto dele do jeito que é e não quero pintar/mudar, estou satisfeita. Não gosto da ideia de passar produtos que possam prejudicá-lo, e realmente gosto dele do jeito que é. 
Aí veio o primeiro choque. Ela tentou me provar que luzes não fazem mal ao cabelo mostrando a foto da sua sobrinha de um ano (!) que tinha feito luzes. E aproveitou para compará-la comigo, que ela era loirinha como eu. Essa situação me desconcertou: dizer que a menina era loira sendo que não era. A menina (devo dizer bebê?) tinha a pele morena e traços fortemente africanos. Não tinha nada de loira além das luzes no cabelo. Não sei dizer o que me chocou mais: fazer luzes numa criança de um ano ou fazer isso para que ela fique 'loira'. Essa criança vai ouvir desde sempre que é errado ser do jeito que ela é, com seus cabelos negros -- melhor é ser loira. 
Comecei a me sentir desconfortável no salão. A moça não parava de sugerir que a cor do meu cabelo era ótima, bem melhor do que os cabelos que ela costumava atender. Como se ela me dissesse: você é melhor porque é branca. 
Mas isso não foi o que mais me chocou. Quando estava quase terminando, um carro parou na porta e uma moça entrou. A princípio não dei muita atenção, ela só estava pedindo para fazer uma hidratação. A cabeleireira disse que para o cabelo dela custaria 450 reais. Isso me chamou a atenção (três vezes mais do que ela me pediu! -- qual seria o tamanho do cabelo da moça?) e dei uma boa olhada nela. Era uma mulher bonita, vinte e poucos anos, negra, com uma cabelo muito bonito um pouco abaixo dos ombros. Ou seja, bem mais curto que o meu. 
Mesmo com o preço salgado, a moça disse ok e perguntou se poderia ser no mesmo dia ou no dia seguinte. A cabeleireira abriu a agenda e disse que estava lotada até setembro -- enquanto eu olhava a agenda pelo reflexo do espelho, vendo que não tinha NADA marcado. 
A cliente agradeceu e perguntou se ela conhecia algum salão na região. A resposta: "Ah, para tratar seu tipo de cabelo, sugiro que você procure salões nos bairros tal e tal" (bairros extremamente pobres da minha cidade). 
Novamente ela agradeceu e foi embora num carro novinho (não entendo de carro, mas era um carrão -- desses grandes, que custam bem caro). E a cabeleireira voltou para finalizar o meu, comentando:
Cabeleireira: "Ah, ainda bem que ela foi embora. Tentei colocar um preço alto mas mesmo assim ela não desistiu"
Eu (chocada): "Mas você não estava precisando de dinheiro e com horário vago?"
C: "Estava, mas ainda não tô passando fome para atender gente assim."
Eu: "Assim como?"
C: "Ah, esse pessoal de cor. O cabelo é muito ruim, não é bonito e fácil de lidar como o seu. Além do mais eles têm um cheiro esquisito, já reparou? Não cheiram bem como a gente que é loira, o suor deles é muito fedido."
Não consegui responder. Fiquei olhando para ela. Loira como a gente? Ok, eu sou loira, mas ela decididamente não era. Tinha os olhos castanhos claros, a pele bem escura, cabelos que no original deviam ser negros e ondulados, mas que estavam alisados e pintados de loiros, e traços africanos no rosto. 
Não sei o que me chocou mais: se foi o racismo, ali, na minha frente, quase cuspindo no meu rosto, ou se foi a fonte dele, uma moça comum, com óbvia ascendência negra. Não que o racismo por pessoas brancas seja justificável, mas aquela mulher, além de rejeitar o próximo, estava rejeitando a si mesma. 
Eu fiquei pensando naquela moça que foi dispensada. Não bastava ela ter dinheiro para pagar (pertencer à tão privilegiada e minoritária classe média), ter tempo livre (não é todo mundo que pode ir para um salão numa sexta à tarde), dirigir um bom carro. Nada disso importava. Ela ia continuar sendo mandada para a periferia, lá é o seu lugar, não importa quanto dinheiro tenha. Ela ia continuar sendo 'fedida'. 
Eu não consegui reagir. O que responder, Lola? O que responder, pessoal? Denunciar para quem? Provar como? Se a própria vítima foi embora.  
Essa moça não entrou no salão da Ku Klux Kan. Não havia uma suástica desenhada na parede. A pessoa que a atendeu não era um exemplar racista, era uma mulher como ela, como somos todos nós, filhos de pessoas de outras terras. Era só um salão de esquina, igual a tantos outros. E mesmo assim ela sofreu um racismo bárbaro. 
Visualizei a cena dela entrando de salão em salão e sendo rejeitada, enquanto todos a mandavam para o seu lugar. 
Não consegui falar mais nada depois disso. A moça ainda fez alguns comentários, mas respondi com monossílabos, paguei e fui embora. Sei que não vou voltar mais lá. Pessoas da minha família também não. Mas me pergunto se isso é o bastante. Mesmo que a mulher tivesse sido processada e presa (afinal, racismo é crime inafiançável), seria o bastante? Quando as pessoas negam a si próprias, tentam ser aquilo que não são, acham que os outros que têm os genes ligeiramente diferentes são melhores, o que fazer?
Parei e pensei: quantos amigos negros eu tenho? Dois. Sou racista? Não. Mas no meu mundinho de classe média pessoas negras não entram. Tenho amigos brancos como eu e asiáticos, porque essas pessoas estudam em escolas particulares, moram em bairros bons e estudam em faculdades de primeira. Os negros são minoria nesse mundo. E, quando entram, há aqueles que não os aceitam, que acham que eles devem continuar pobres, como gente fedida deve ser. 
O que fazer quando o racismo bate tão violentamente a sua porta? 

Meu comentário: Deixo para vocês responderem às questões da Cecilia. Mas eu me lembro de um dos maiores exemplos de racismo que já vi impressos. Saiu na coluna esportiva de um jornal catarinense, talvez em 1996. Tinha havido um daqueles tensos duelos do vôlei feminino, Brasil vs Cuba, arena de muita rivalidade. E o jornalista decidiu focar na aparência física das jogadoras. As brasileiras, quase todas brancas (apesar de vivermos num país em que mais de 50% da população é negra ou parda), eram lindas, delicadas e dignas, segundo o colunista. As cubanas, todas negras, ele chamou de crioulas, macacas, fedidas -- enfim, todos os termos racistas que a gente conhece. Eu fiquei de cara. Não conseguia acreditar que estava lendo aquilo. E, a ironia suprema: o jornalista é negro. Deve ser o único colunista negro de SC, se bobear.
Eu não escrevi pro jornal protestando, porque pensei: sou branca, acho, e o cara é negro. E eu vou estar acusando um negro de racismo. Hoje protestaria sem piscar. Aliás, hoje, com a internet, aquela coluna, e as reações a ela, correriam o Brasil. Mas eram outros tempos, pré-internet. Não li nenhuma carta de protesto no jornal. Nunca vi aquele colunista se retratar.
Só que individualizar o problema é fácil demais. Pensar que a cabeleireira com ascendência negra ou o jornalista negro é que são racistas, e a gente não, é bem cômodo. Dá até pra jogar aquelas frases de efeito no meio, né? Aquelas baboseiras de "negros são os piores racistas". Pena que não é verdade. A cabeleireira, o jornalista, eu e você, somos produtos da nossa época e lugar. Eles não foram jogados de uma nave espacial e vieram parar no Brasil por acaso. Eles -- nós -- respiram o racismo de toda uma sociedade. E internalizam tudo. Fica automático. Eles -- nós -- aprendem qual é a cor desejável, a cor padrão, a cor bonita, a cor de quem tem poder. Aprendem que negros são feios e fedidos. E que tudo bem chamar negro de crioulo e macaco, ainda mais se for só uma piadinha inocente, o politicamente correto quer acabar com nossa liberdade bla bla bla!
Este relato da Cecilia é interessante também para rebater o pessoal do "não somos racistas", que tá mais pra "não somos apenas racistas". Sabe o pessoal que diz que a discriminação no Brasil é pela classe social, não pela cor? Pois é. Pensem na moça que, mesmo tendo dinheiro pra pagar, não é atendida num salão por uma cabeleireira que acredita que negros cheiram mal.

14 de set. de 2012

Jorge Amado em sala de aula

Esse post foi retirado de uma matéria da Revista de História da Biblioteca Nacional que aborda a questão dos livros de Jorge Amado como material de estudo para as aulas de História, tanto seus livros como os filmes que surgiram dos seus escritos.

Para ver a matéria no site original, clique aqui.


Amado em sala de aula

Jorge Amado escreveu romances que retratam diversos aspectos da sociedade brasileira. Sua obra pode ser levada à escola e trabalhada por professores de História, Geografia, Sociologia e Literatura

Ilana Seltzer Goldstein

  • Ilustração: João Teófilo
    Ilustração: João Teófilo

























    Jorge Amado (1912-2001) foi um escritor superlativo: publicou 32 livros povoados por mais de 5.000 personagens e vendeu cerca de 30 milhões de exemplares somente no Brasil. Embora editado em 52 países e traduzido para 29 línguas, escreveu quase exclusivamente a partir de sua Bahia natal. Ainda assim, seus romances trazem para a sala de aula provocações relevantes sobre diferentes aspectos da sociedade brasileira, e até mesmo questões universais [como mostra o artigo Bahia universal, publicado este mês na Revista de História].

    Em Gabriela cravo e canela, por exemplo, há passagens em que a submissão da mulher fica evidente. O livro começa com o assassinato de Sinhazinha por seu marido, que a flagrara com outro. Há prostitutas que são posse exclusiva de certos coronéis. A protagonista Gabriela, por outro lado, destoa ao buscar sua liberdade e sua autonomia. Há também a heroína de Tereza Batista cansada de guerra é uma menina criada pela tia que, ainda adolescente, é obrigada a servir sexualmente um homem violento em troca de dinheiro. A partir da leitura desses romances, ou da projeção das respectivas adaptações audiovisuais, pode-se pedir aos alunos que tracem os perfis femininos encontrados no romance, para depois compará-los às possibilidades e atitudes das mulheres no Brasil do século XXI.
    Antonio Balduíno, herói de Jubiabá, tem Zumbi dos Palmares como ídolo. Seu antepassados foram escravos e ele frequenta terreiros de candomblé. Pedro Archanjo, protagonista de Tenda dos milagres, tenta convencer a todos de que as tradições afrobrasileiras enriquecem a cultura nacional e que a mestiçagem é uma grande riqueza. Mas há também personagens racistas, como a mãe de Lu, noiva de Tadeu Canhoto, em Tenda dos milagres, que não gosta dele por causa da cor de sua pele. Ou a cozinheira Amélia, de Jubiabá, que acredita que “o negro tem que saber o seu lugar”. A partir da leitura desses dois livros ou da projeção dos filmes homônimos, o professor de história terá elementos para abordar as consequências da escravidão africana no Brasil; o racismo baseado na cor e na condição socioeconômica; e as polêmicas recentes em torno das cotas raciais nas universidades.
    O cavaleiro da esperançaé uma biografia de Luís Carlos Prestes, líder comunista que liderou a lendária marcha da Coluna Prestes por todo o Brasil. Esse é um dos livros menos conhecidos de Jorge Amado – que, inclusive, foi um dos articuladores da campanha pela libertação de Prestes, quando de sua prisão. A leitura desse livrinho possibilita ao professor de história, geografia ou sociologia recuperar o movimento socialista no Brasil e no mundo, algo hoje distante da realidade dos alunos.
    O Sumiço da Santa se passa durante “os piores anos da ditadura militar”, nas palavras do próprio narrador. Episódios de prisão, censura e tortura se fazem presentes em várias passagens. O enredo é pontuado por indícios contextuais da década de 1970. O cineasta Glauber Rocha é citado no livro como um dos freqüentadores “subversivos” do Teatro Vila Velha, em Salvador. O narrador se refere a um show de Caetano Veloso e Gilberto Gil, recém-chegados do exílio, no ano de 1973. Já o poeta Vinícius de Moraes, outro figurante da trama, comenta que acabou de compor “Tarde em Itapoã”, canção gravada em 1971. Pode-se, a partir desse livro, que é divertido e fácil de ler, proporcionar a imersão do aluno no contexto da ditadura militar e da contracultura. Uma possibilidade é solicitar que liste nomes de personalidades e fatos históricos encontrados no romance e depois pesquise sobre suas histórias pessoais, seu engajamento político, e sua produção cultural.

    Produção de cacau

    O primeiro plantio de cacau na região de Ilhéus teve início ainda no século XVIII, com sementes trazidas da Amazônia. Até 1900, apenas agricultores estrangeiros dedicavam-se esparsamente ao cultivo do cacau; a partir de 1910, começou a corrida pelas terras da região. O governo passou a doar terras a quem quisesse plantar, atraindo nordestinos que fugiam da seca. A cidade enriqueceu e se transformou rapidamente: a população aumentou, foram erguidos palácios, estabelecimentos comerciais e hotéis, culminando com a construção do porto, em 1924 – financiada pelos próprios cacauicultores. As movimentadas décadas de 1910 e 1920 em Ilhéus constituem o pano de fundo de Terras do Sem Fim,São Jorge dos IlhéusGabriela, cravo e canela A descoberta da América pelos turcos. A leitura de qualquer um desses livros, pelos alunos, terá grande rendimento em aulas de geografia que tratem de migrações internas no Brasil (e também da imigração árabe para o Brasil); dos custos humanos e ecológicos da implantação de fazendas em áreas antes cobertas por mata atlântica; dos impactos da construção de infra-estrutura (estradas, portos) que acompanha o surgimento da agricultura de exportação.

    Amado na TV
    Jorge Amado, o autor brasileiro que mais inspirou adaptações para cinema e TV, se negava a assisti-las. Isso porque os roteiristas e diretores realçam um aspecto do livro em detrimento de outros, criam novos personagens ou eliminam passagens inteiras, levando em conta a duração dos episódios e as preferências do público. Na adaptação de Gabriela, cravo & canela, feita por Walter Durst, em 1975, Sônia Braga está presente nos primeiros capítulos, ao passo que no livro a protagonista só aparece depois da página 100. A liberdade social e sexual de Gabriela, que perpassa o livro, tornou-se erotismo na telenovela.
    Além disso, enquanto no texto literário as imagens se formam em nossa mente, em um processo solitário, silencioso e pautado por nosso próprio ritmo, as telenovelas e filmes nos oferecem imagens prontas – personagens têm rostos específicos, paisagens têm cores definidas –, acompanhados por trilhas sonoras penetrantes. O professor de língua portuguesa ou de artes poderia propor, primeiro a leitura, depois a visualização de um filme adaptado da obra de Jorge Amado, para comparar, junto com os alunos, cada uma das versões – o que têm em comum, o que só é possível em um dos casos, o que foi suprimido ou acrescentado na adaptação audiovisual etc.  Os livros/filmes ideais para essa atividade são: A Morte e a Morte de Quincas Berro D'águaTenda dos Milagres;  Capitães da Areia;Tieta do AgresteGabriela, cravo & canela (este último contém cenas de nudez).

    Diferentes gêneros
    Jorge Amado combina diferentes gêneros literários e textuais dentro de seus romances. Capitães da areia começa com cartas enviadas ao jornal, nas quais os remetentes emitem opiniões sobre o que deve ser feito com aqueles meninos que moram na praia. No início de Dona Flor e seus dois maridos, a protagonista escreve um bilhete a Jorge Amado, comentando uma receita de bolo de puba e oferecendo um pedaço ao autor, num jogo entre ficção e realidade. Em Tenda dos milagres, os textos que Pedro Archanjo escreve para combater as ideias racistas de Nilo Argolo são na forma de folhetos de cordel. Em Jubiabá, o personagem Gordo canta letras tristes para pedir esmola, ao passo que Zé Camarão é compositor de sambas com letras cheias de malandragem. Partindo desses exemplos, o professor pode trabalhar com seus alunos as diferenças de gêneros textuais e literários e pedir que exercitem-se na redação de alguns desses formatos. Um trabalho análogo pode ser feito em relação à norma culta e ao registro coloquial de linguagem e, por vezes, até mesmo registro vulgar, todos presentes nos livros de Jorge Amado e adequadamente empregados em função da situação de comunicação.
    Em 1961, a Editora Martins lançou uma coleção comemorativa especial dos 30 anos da obra de Jorge Amado, toda ilustrada por artistas nacionais. Renina Katz, por exemplo, fez gravuras para Os subterrâneos da liberdade; Oswaldo Goeldi ilustrouMar morto; e Poty criou ilustrações para Capitães da areia. Essas imagens são facilmente encontradas na internet. Sugere-se ao professor de artes e/ou língua portuguesa que discuta com os alunos as relações de complementaridade, redundância ou paralelismo entre texto e imagem. Que explique a técnica da xilogravura, utilizada pelos três ilustradores de Jorge Amado acima citados. E que, em seguida, convide-os a realizarem uma ilustração para uma passagem de Mar Morto ouCapitães da Areia.

    *Ilana Seltzer Goldstein é autora de O Brasil best-seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional (Editora Senac, 2003).