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29 de nov. de 2013

Reflexões


“O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente” (Carlos Drummond de Andrade).

Eu adoro esse trecho do poema Mãos Dadas do Drummond. O poeta conseguiu definir em poucas palavras minha paixão por estudar História, relacionando o Tempo, o Presente e a Vida. Se o Tempo é a principal perspectiva da análise história, ela não se faz sem pessoas, tanto as que se foram quanto as que estão aqui nesse mundo.
Hoje lembrei desse trecho olhando os alunos do último ano do Ensino Médio comemorando seu último dia de escola. Apesar de diversos últimos, foi um dia muito alegre e muito vivo para aquela gurizada. A alegria e o alívio de encerrar um ano cheio de provas, aulas, trabalhos, discussões e (in)definições foi bonito de se ver. Os sorrisos e as fotos se espalhavam pelo corredor e no final tudo acabou em tinta, fotos e bagunça, muita bagunça (de branquear cabelos dos adultos).
E eu no meio de tanta alegria e festa, lembrando do Drummond e pensando o quanto a escola congrega de vidas e histórias. Quantos dias passados lá com eles, quanta falta eles farão, como será o futuro dessa gurizada? Como esse espaço social concentra pessoas diferentes, com trajetórias diferentes, com momentos e pensamentos diferentes.
Por isso não é fácil a convivência em muitos momentos, é muita vida junto, é muita experiência acumulada e a acumular, são muitas falas e falatórios e será muita saudade. Eles até podem respirar fundo agora pelo fim da maratona de avaliações, mas em Fevereiro de 2014, quando a mochila já estiver aposentada é que a ficha cairá. E o tempo, esse invento dos humanos, irá mostrar aos poucos o quanto esse período foi importante. E a memória, amiga da História, fará o jogo do lembrar e esquecer (com certeza esquecerão da matéria – quem foi Tiradentes mesmo? O que é hidrocarbonetos? – e lembrarão da Gincana, do dia em que o fulano tentou colar na prova da professora tal).
Espero que sejam mais lembranças boas que ruins. Espero que sejam felizes, espero que saibam aproveitar as oportunidades e que cresçam na vida. Espero que quando pararem para refletir sobre suas vidas, e pensarem sobre suas Histórias, tenham a certeza que escolheram caminhos produtivos. E não estou me referindo a dinheiro (que é ótimo e a vida capitalista solicita), falo de satisfação, satisfação de ser e estar no lugar e na vida que construíram para cada um.
Feliz 2014, anjinhos!

24 de out. de 2013

Produções Discentes


Vamos falar de coisas boas nas escolas? 

Pois quando pensamos em escola e principalmente em escolas públicas, vem a nossa cabeça um tsunami de problemas, dificuldades, desaforos, trabalho e descasos. Sim, realmente existe esse "caos" educativo e o objetivo aqui não é discordar disso. Entretanto, dizem que todo o "caos" é criativo e em meio a esse turbilhão há momentos e situações positivas que merecem ser relatadas, comentadas e divulgadas por aí. 
É necessário uma posição diante das dificuldades, mas eu prefiro começar falando do que está dando certo para depois reivindicar e rever o que está errado. Relembrando, mais uma vez, que é somente a minha opinião, não quer dizer que é "a verdade" ou "a correta".

A partir disso, vou apresentar algumas produções textuais dos discentes do terceiro ano do Ensino Médio de uma escola pública de Porto Alegre que merecem ser destacadas. Adianto que as produções foram cedidas pelos autores e que realmente merecem a leitura.

O tema da redação era o seguinte: "Gonçalves é um angolano nascido em Luanda que veio para o Brasil passar as férias. Além da curiosidade por conhecer as paisagens brasileiras, Gonçalves queria conhecer mais sobre a escravidão que aconteceu aqui. Como boa parte dos escravos que aportaram para o Brasil vieram de Angola, Gonçalves queria entender o que aconteceu com seus antepassados depois que eles atravessaram o Oceano Atlântico.
Você é muito amigo(a) do angolano e sabe que ele está vindo para o  Brasil. Escreva um texto relatando como tu contarias esse passado escravista brasileiro para o Gonçalves, onde você poderia levar ele, qual a influência dos africanos no país. Além de contar um pouco sobre esses 300 anos de regime escravista, é necessário comentar sobre a situação dos afrodescendentes atualmente. Como ficaram os escravos depois da abolição? Qual a situação dos negros hoje em dia no nosso país?"

A primeira redação a ser publicada é da aluna Gabriela da Rosa Neto:

Ao desfrutar os cocais do litoral, as praias de Copacabana, as matas amazônicas, e o frio gaúcho, você perceberá que não há outro lugar como o Brasil, um país cheio de corrupção política, um país onde a população se preocupa com as novelas da Globo, e com coisas que não fazem sentido e esqueçam que na vida real ainda há pessoas passando fome e falta de educação e hospitais, mas além de todos esses desastres culturais, um dos aspectos mais polêmicos é justamente a questão do negro em relação ao resto da população, é um fato historicamente triste que atinge uma boa parte da população.
O Brasil é um país de miscigenações, onde os índios nativos se escondem, os negros ainda sofrem influências do passado e o branco (colono) sempre se apodera de tudo, os costumes e conceitos etnocêntricos não mudaram muito hoje em dia, em pleno século XXI. No Brasil os “negros” ou “afrodescendentes”, possuem baixas condições econômicas, onde um suposto negro pós-graduado com mestrado e doutorado, muitas vezes ganha uma porcentagem inferior que a de um homem branco que trabalha na mesma área, mas não precisou se esforçar tanto para garantir sucesso na vida, a situação só piora para as mulheres negras, tendo uma porcentagem ainda menor em relação ao salário do homem negro, do homem branco e até mesmo da mulher branca, – quanto a isso, meu amigo Gonçalves, podemos dizer que não será nada fácil pra você, – pois ainda há um notável preconceito no mercado de trabalho, quanto  a questão genérica ou étnica.
Na região Sul do Brasil não há muita descendência negra, é uma etnia mais habitada para o litoral Norte e Nordeste do Brasil, pois na época da escravidão era mais fácil transportá-los dos navios negreiros chegados da África para o litoral do Brasil. A Bahia era o estado que mais produzia cacau na época, e era a região que mais havia escravos para produzir mais cacau e vender ao exterior, mais fluentemente entre a época do Brasil Colônia ao Imperialismo de Dom João VI, que foi uma época bastante conturbada para quem nasceu na África, até porque era abundante o comércio de escravos, estes eram vendidos como produtos e mão de obras baratas.
A Abolição da Escravidão, em 1888, e consequentemente a Proclamação da República, em 1889, não adiantaram de nada para as condições de quem trabalhava para “senhores de engenho”, muitos deles já não tinham oportunidades de emprego e não tinham como se sustentar, portanto, estes se acolheram em cortiços e morros, dando início a uma serie do que viria a ser a pobreza do negro hoje em dia, por isso a maioria, ainda hoje mora em vilas e têm mínimas condições econômicas, outros poucos se contentaram com o sistema, foram à luta e conseguiram mudar de vida econômica.
Ainda durante o século XX, foi uma época difícil para quem nasceu negro, pois ainda havia preconceitos e insultos, na década de 1950 algumas famílias negras ainda trabalhavam nas casas de pessoas brancas, mas isso não era visto como escravidão, pois essas famílias sustentavam os filhos dos trabalhadores e ainda davam um troquinho pela recompensa. Mas na década de 1980 foi legalizada uma lei, dizendo que era crime discriminar uma pessoa pela aparência externa, ou mais precisamente, descriminar um negro pela cor da pele ou pelas condições de vida. E por lei é permitido que todo o ser humano, seja lá qual etnia for, deve ser tratado como um cidadão, com direitos iguais, como todos os demais, pensando nisso, o sistema resolveu concretizar as Cotas Raciais nas Universidades, já que poucos têm condições de pagar para estudar em universidades públicas ou federais, enquanto outros têm que trabalhar muito para pagar os estudos, embora essa política não sirva somente para os negros, pois não adianta nada um negro ter estudado o ensino médio inteiro em escola particular, esse sistema vale para quem estudou durante todo o ensino médio em escola pública e que tenha uma renda média per capita de um salário mínimo.
Hoje em dia ainda é permitido dançar e lutar Capoeira pelas ruas, antes quem fizesse tais amostragens era condenado a no mínimo seis meses de cadeia, isso é um absurdo, mas depois da abolição da escravidão, da República Velha, e durante a década de 30, Vargas havia visto uma dessas danças e achou muito bom, então ele legalizou para que fosse possível dançar capoeira livremente na rua, também tem o Carnaval, criada e incentivada pelos negros na mesma época.
Conclui-se que o negro é a cara do Brasil, é a etnia que fez o Brasil ser o que é hoje, em questão de produção e em questões culturais. Mas o Brasil negro se esconde atrás da cara branca, ou seja, a população brasileira não se espelha na África, na verdade, o brasileiro se influencia com os costumes europeus.


20 de out. de 2013

Do Congo ao Brasil

Encontrei essa reportagem do Opera Mundi sobre uma refugiada do Congo que por acaso fugiu para o Brasil. Uma história de vida muito trágica e cotidiana de regiões africanas que permanecem durante anos em conflito.

Vale a pena a leitura!



A refugiada congolesa que chegou ao Brasil por acaso


Ornela Mbenga Sebo tem hoje 23 anos. Ela vivia com seus pais e duas irmãs em uma casa confortável na cidade de Walikale, na província de Kivu do Norte, na República Democrática do Congo. Era uma quarta-feira no mês de janeiro em 2011, quando sua vida mudou. Como de costume, acordou cedo, tomou banho, fez a refeição com sua família e despediu-se para mais um dia de trabalho sem saber que aquela seria a última vez que veria seus parentes.
Desde a década de 90, o Congo vive um conflito político e civil. Mobutu Sese Seko governou o país desde 1965. Após o seu exílio forçado, em 1997, o líder opositor Laurent D. Kabila passou a ocupar o cargo da presidência. Foi neste momento que grupos de origem ruandesa se revoltaram contra Kabila, que acabou assassinado em 2001 por seu guarda-costas. Com isso, o filho, Joseph Kabila, assumiu seu lugar.Após ser eleito presidente em 2006, Kabila atuou para desmobilizar vários grupos opositores, mas o ano de 2011 marcou mais uma investida de crimes que assolaram várias cidades congolesas.
A grave crise humanitária que acometeu o Congo já deixou quatro milhões de mortos em razão de combates armados, mas também devido a fome e doenças. Por pouco Ornela sobreviveu e teve um destino que jamais poderia imaginar. Ela foi violentada e escravizada, mas conseguiu fugir em um navio mercante rumo ao Brasil. No Rio de Janeiro, a jovem do Congo contou sua história rica a Opera Mundi.


O dia em que tudo mudou


Aos 21 anos de idade, Ornela viu sua casa ser incendiada e se perdeu da família. “Começou o bombardeio e tiros. A gente pensou que era uma coisa passageira, mas não passou. Quando acalmou, saí do trabalho para tentar chegar em casa e vi minha casa pegando fogo”, lembrou.
Desde pequena, seu pai lhe contava que a guerra já acontecia havia tempos. “É muito difícil sentir na pele. Fiquei desesperada. Pensava que meus pais estavam lá dentro da casa pegando fogo. O governo não faz nada e a polícia é a primeira a sair da cidade”, disse.
Walikale ficou irreconhecível com prédios incendiados e destruídos. Embora a iminência de um conflito em Kivu do Norte sempre estivesse presente e os moradores se preparassem para fugir das cidades e seguir em direção à capital, Kinshasa, a família de Ornela não previra o ataque. A onda de violência veio sorrateira e devastou a vida de milhares de pessoas.
“Eram opositores de Ruanda e Burundi. Desde que a gente mudou o presidente, esse conflito começou. Quando a gente ouvia que ia ter guerra, saíamos da cidade e seguíamos para Kinshasa. Dessa vez aconteceu assim de repente”, narrou.
Em choque e sem saber a quem recorrer, a jovem se juntou a um grupo de pessoas,em direção a Kinshasa. A esperança era encontrar avós que viviam na capital.
Foram longos dias de caminhada debaixo de sol, chuva e vento. “Não tinha certeza se estavam vivos, mas queria encontrar minha outra família. Fugi a pé. Andamos duas semanas. Encontrei com pessoas que estavam fugindo também, eram idosos, crianças, mulheres e homens”.
Ornela narra com detalhes sua jornada. Ao longo dos dias, ela atravessava cidades inteiras a pé, aparentemente fantasmas. “Não tinha mais ninguém, havia mortos pendurados. Passamos numa cidade que tinha gente morta na rua, cachorros comendo corpos, cidades destruídas. Tenho vivo na memória, quando conto, parece que volto no lugar de novo”.



Ataques



Apesar das intempéries do caminho, o maior perigo era ser atacada por grupos que “andavam de cidade em cidade procurando gente para matar”.  
“Fingi estar morta. Botei sangue de alguém no meu corpo, coloquei uma pessoa morta em cima de mim e prendi a respiração. Chegaram perto, me chutaram para ver se eu estava viva e foram embora. Eu continuei a caminhada”, relatou.
Até que em mais um cerco, a jovem não escapou e foi capturada. Perguntada se chegou a ter medo de morrer, ela disse: “naquela hora não, não tinha mais sentimento, já que meus pais não estavam, perdi a esperança, não sabia o que fazer”.
Em um grupo de 60 pessoas, Ornela foi levada à força para a Tanzânia. Sua função era buscar água para os sequestradores diariamente no porto de uma cidade que nunca soubera o nome. “Fui para a Tanzânia sendo escravizada. Prendiam a gente com força para dormir com eles, lavar roupa e fazer comida. Eles comiam e depois botavam a comida no chão para a gente comer. Eu dormia no chão em um acampamento. Sofri moralmente, física e mentalmente. Uma senhora que não queria dormir com eles, mataram cortaram ela (sic) na frente da gente. Bateram em mim algumas vezes, levei tapas, chutes”, descreveu.
Era um grupo de cerca de 30 pessoas, munidas de armas, granadas e facões. Ela lembra ouvi-los falar em rádio no idioma swahili. “Acho que o governo sabia dessas coisas. Eles falavam que iam matar todo mundo”.
Em uma de suas idas e vindas ao porto para buscar água – eram mais de 30 baldes por dia – Ornela conheceu um rapaz que ficou intrigado por ver sempre a moça com a mesma roupa. “Foi o rapaz que me ajudou a fugir. Ele me via todo dia com a mesma roupa quando eu ia pegar água. Tinha medo, não confiava mais em ninguém”.
O rapaz ganhou sua confiança e, como trabalhava no porto, arranjou que ela embarcasse escondida em um navio mercante e disse “você vai fugir para qualquer lugar que for”.



A fuga



Era uma madrugada em fevereiro, quando pulou o muro e entrou em um navio escondida. “Era uma questão de vida ou morte. Ele me deu um saco de amendoim e fiquei onde estava o lixo do navio”.
Ele se chamava Papy. Ornela nunca mais se esqueceu do nome do rapaz que salvou a sua vida. “É muito difícil encontrar alguém que quer te ajudar sem nada de volta. Ele me ajudou bastante”.
Foram duas semanas de viagem no escuro sem poder sair do depósito de lixo. Sem perguntar para onde ia, exausta e sem documentos, a jovem apenas sonhava em se ver livre dos rebeldes.
Moribunda, dias depois desembarcou numa cidade portuária. “Fui andando procurando alguma coisa para comer. Perguntei: eu tô aonde? E responderam, você está no Brasil”.
Ela falava português por ter estado em Angola anos antes. A jovem do Congo estava em Santos. “Fui perguntando se tinha trabalho e o dono de um bar me deu um suco e um salgado. Falei que vinha do Congo e tinha acabado de chegar. Um cara do lado disse que conhecia um angolano me levou até ele. Tudo isso aconteceu no mesmo dia”. Foi acolhida por um estudante angolano que se solidarizou com sua história e, em menos de um mês, a chegava no Rio de Janeiro para ser recebida por conterrâneos.
“Me mandaram dinheiro para comprar passagem de ônibus. Foi o momento mais feliz quando me receberam. Todos choraram. Eles disseram que iam ajudar a procurar minha família. Foram meus anjos da guarda”, disse.
No Rio, Ornela reconstruiu sua vida. Ela vive no bairro de Irajá, no subúrbio carioca, com os quatro amigos – Felly, Freddy, Raule e Rodrigue. Obteve o status de refugiada no Brasil e tem o direito de viver e trabalhar como qualquer cidadão brasileiro.
Com a ajuda da Cáritas, entidade que trabalha em parceria com o governo brasileiro e a ONU para acolher refugiados, Ornela conseguiu um emprego de recepcionista no Parque Tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lá fez inúmeras amizades, mas faltava ainda uma coisa para que se sentisse com a vida reconstruída. Ela queria encontrar algum parente.



O reencontro



Desde 2011, nunca mais falou com ninguém de sua família. Com uma conta do Facebook, seu tio que vive na França a localizou e quase um ano depois seus pais também a encontraram.
“Mobilizaram gente para encontrar meus pais, foi gente na minha cidade com fotos procurando. Demorou uns 10 meses para encontrar. No ano passado eu estava no trabalho, meu celular tocou e ouvi uma voz diferente. Era minha mãe. Chorei muito. Era tanta alegria, tudo o que eu queria. Mãe você está viva? Eu parei aqui no Brasil... não sei bem explicar”.
No dia do incêndio da casa em 2011, seus pais e irmãs se esconderam num bunker construído no subsolo, mas conseguiram sair antes da casa pegar fogo e fugiram para o Senegal. Hoje, sua família vive em Chicago, nos Estados Unidos.
“Esse foi o momento mais, mais, mais feliz da minha vida. Sempre fui muito apegada aos meus pais. Agradeço todos os dias”, salientou.
Sua meta é visitar a família. Quer passar o Natal com os pais. Sensibilizados, seus colegas lançaram uma campanha pela internet de crowdfunding para arrecadar dinheiro e ajudar a pagar sua passagem de avião. Ela pretende ficar perto dos pais e irmãs.
A história vai virar livro também, pois Ornela topou contar em detalhes passagens de sua vida para uma biografia. Uma coisa é certa para a jovem refugiada do Congo: não pretende voltar tão cedo para seu país. “Não pretendo voltar. É meu país, eu amo, sou africana, sou do Congo, mas só voltaria se a situação estivesse mais segura. Aí posso voltar, mas não para morar, só para visitar meus avós que continuam lá”.





16 de out. de 2013

Arquivos da Cidade

Para visualizar o documentário, clique nesse link: http://www.youtube.com/watch?v=nIIma7ZtSPY

Informações sobre o documentário:
Diretores: Felipe Diniz e Luciana Knijnik
Ano: 2009
Depoimentos:
Antonio Losada;
Lino Brum Filho;
Carlos de Ré;
Gregório Mendonça;
Ignez Serpa Ramminger;
Bona Garcia.

Esse documentário proporciona uma boa aula de história sobre a Ditadura Civil-Militar Brasileira. A começar pelo nome “Arquivos da Cidade”: são seis pessoas, seis memórias, seis depoimentos, seis arquivos de seis diferentes experiências de quem lutou contra a ditadura em Porto Alegre. Os arquivos aqui não remetem a papeis e documentos antigos, mas se referem a diferentes pessoas: estudantes, líderes sindicais, familiares de desaparecidos, que viveram este período da história nacional e tem muito que contar de suas vivências.

Antes de continuar o texto sobre o documentário, uma ressalva teórica: memória não é história. Lembrar um evento ocorrido anos atrás não quer dizer que se está escrevendo “A” história do período. A memória é um mosaico que se faz e refaz a todo instante, dependendo do momento em que é solicitada a lembrança. Então, a memória dos acontecimentos ocorridos no período da ditadura para essas pessoas na década de 1990 era distinta das lembranças gravadas nesse documentário em 2009. Isso acontece não porque essas pessoas querem “mascarar” os acontecimentos e esconder a “verdade”. Isso ocorre porque a memória do ser humano é assim, inconstante, fugaz, transitória. Devido a essa característica, técnicas de pesquisa são utilizadas para escrever a história do período levando em consideração os depoimentos das pessoas, de maneira que o produto final esteja dentro dos métodos científicos que a ciência da história permite e aceita.

Os arquivos da cidade se referem a uma cidade em específico: Porto Alegre. Essa é mais uma característica que favorece a escolha desse documentário principalmente para quem leciona na própria cidade. É comum no ensino de história focar no Brasil. Sendo assim, algumas cidades mais “nacionais” são destacadas, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília. Essa é uma oportunidade de destacar o que aconteceu aqui, na cidade dos alunos, destacando locais que eles conhecem porque já passaram por lá, como o Hospital Nossa Senhora da Conceição comentado no vídeo.

É interessante destacar Porto Alegre também devido a sua participação dentro do contexto de Ditadura Civil-Militar. Por ser a capital do estado do RS o aparelho burocrático e repressivo do governo ditatorial era centralizado aqui. Além disso, o estado do RS é fronteira da Argentina e Uruguai, favorecendo trocas de informações e prisioneiros, pela Operação Condor. Isso favorece em pensar a cidade como ponto estratégico do governo brasileiro, não como um lugar em que nada aconteceu ou como palco secundário, deslocando o foco para o Rio de Janeiro ou Brasília.

Documentário não é um gênero cinematográfico que os alunos estão acostumados. Entretanto esse em específico foi feliz em dois quesitos: por ter uma curta duração, favorecendo que professores com poucos períodos de aula semanais consigam exibi-lo em um período e porque são as pessoas que contam, de “cara limpa e peito aberto” suas histórias, incluindo o período da prisão e da tortura. Nada mais impactante que ouvir e ver uma pessoa contando o que ela passou, a empatia é muito mais forte. Isso prende a atenção dos discentes, mesmo os mais dorminhocos.


Para finalizar, destaco a questão do vocabulário da época. “Expropriação”, “Revolução”, “Clandestinidade”, são palavras que os depoentes falam e que favorecem tratar do contexto desse vocabulário na época. Só essas três já propiciam uma outra aula. Cair na clandestinidade era abandonar a sua identidade: largar emprego, família, casa, trocar de nome, mudar de cidade, fugir da polícia que estava procurando por você. Normalmente as pessoas ficavam em “aparelhos”, que eram casas ou apartamentos alugados para disfarçarem os clandestinos e proporcionarem lugares para as reuniões dos movimentos organizados. A “Revolução” era a revolução de esquerda, sendo o modelo cubano o mais pensado e desejado, com a tomada do poder e a transformação do Brasil em um país comunista. E “expropriação” eram roubos e assaltos cometidos pelos movimentos de esquerda organizados para arrecadarem dinheiro para a “Revolução”, financiarem armamentos e manterem seus integrantes na clandestinidade.

14 de out. de 2013

A Globalização da Indiferença


As notícias recentes de naufrágios em Lampedusa, uma das ilhas italianas que fica entre a África e a Itália (leia-se Europa), retomam novamente as questões de imigração ilegal e xenofobia na Europa. Milhares de pessoas saem de locais pouco desenvolvidos ou que estão em guerra em busca de melhores condições de vida. As ilusões de "melhores condições de vida" se encontram em locais ricos e desenvolvidos, como a Europa ou os Estados Unidos da América.
Esses locais são realmente bem desenvolvidos economicamente se comparados aos países onde saem esses imigrantes. Entretanto, essa riqueza não é para eles. Essas pessoas que se aventuram em imigrações clandestinas não possuem boas oportunidades nos países ricos. Primeiro porque são ilegais, não é para eles estarem naqueles locais. Segundo porque não tem estudo para conseguir um melhor emprego. Terceiro porque os habitantes dos países ricos veem os imigrantes como um problema, pois estão em "seus países" para tirar vagas de empregos. Tanto que há políticas contra os imigrantes, proibindo a entrada e a permanência dos "estorvos".



Segue um texto da Carta Capital muito interessante sobre os últimos acontecimentos em Lampedusa, relacionando com os problemas de imigração ilegal. Segue o link: http://www.cartacapital.com.br/revista/770/a-globalizacao-da-indiferenca-6775.html


E pra quem veio de Marte ontem e não sabe o que está acontecendo na Terra sobre isso, dois links sobre as notícias de Lampedusa: aqui e aqui.

25 de set. de 2013

Ditadura Civil-Militar e suas combatentes: depoimentos de mulheres presas

Encontrei essa reportagem muito boa da Marie Claire sobre os depoimentos de presas políticas durante o período da Ditadura Civil-Militar no Brasil que estão ressurgindo agora através da Comissão da Verdade (que estará investigando os crimes cometidos naquele período da história do Brasil até dezembro do ano que vem).
São depoimentos fortes que merecem ser lidos e relidos sempre. 

Os testemunhos das mulheres que ousaram combater a Ditadura Militar

Em pé sobre uma cadeira, nua, encapuzada e enrolada em fios, Ana Mércia Silva Roberts, então com 24 anos, esforçava-se para manter os braços abertos, sustentando uma folha de papel presa entre os dedos de cada mão. Ela estava naquela posição havia horas. A cada vez que o cansaço lhe fazia baixar minimamente os braços, um choque elétrico percorria todo seu corpo. E as gargalhadas preenchiam a pequena sala. Eram vários homens, talvez oito, talvez dez. Cada um com um rosto, uma história, uma vida. “Um dos meus torturadores poderia ser meu avô, um senhor de gravata-borboleta para quem eu daria lugar no ônibus; o outro era um loiro com chapéu de caubói. Havia um homem com jeito de pai compreensivo que chegou a me dar um chocolate, e um jovem bonito com longos cabelos escuros, que andava de peito nu, ostentando um crucifixo, de codinome Jesus Cristo”, afirma.
INTEGRANTES DO GRUPO "TEATRO EM GREVE CONTRA A CENSURA" PROTESTAM NO RIO DE JANEIRO EM FEVEREIRO DE 1968 (Foto: Gonçaves (CPDOCJB))
INTEGRANTES DO GRUPO "TEATRO EM GREVE CONTRA A CENSURA" PROTESTAM NO RIO DE JANEIRO EM FEVEREIRO DE 1968 (FOTO: GONÇAVES (CPDOCJB))

O rosto desses algozes, integrantes da repressão militar, e as cenas do dia em que teve de ser estátua viva perante eles são parte das lembranças que Ana Mércia, hoje 66, guarda de quase três meses de prisão no DOI-Codi e no Dops, dois centros paulistanos de tortura e prisão de oposicionistas ao regime militar, instaurado sete anos antes. Integrante do Partido Operário Comunista, ela esteve nos porões da ditadura em 1971, mesma época em que o País vivia a prosperidade do “milagre econômico” e o ufanismo alimentado pela conquista da Copa de 70 e por slogans como “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Nos meses em que ficou encarcerada, seu corpo e mente foram massacrados de diversas formas. Mas não é ao descrevê-las que seus olhos ficam marejados. “Estranhamente, eu não me lembro de quase nada daquelas semanas, meses. Fiz terapia, mas não consigo recuperar esses trechos da minha vida. O que mais me dói é isso. Vários pedaços de mim e da minha existência não me pertencem, ficaram com eles (os militares)”. Ana Mércia é uma mulher com pouca memória das torturas daqueles porões. E é também uma metáfora do próprio Brasil, que segue desmemoriado das histórias do regime militar (1964 a 1985) quase 30 anos depois do fim da ditadura. A diferença entre Ana Mércia e o Brasil é que ao País foi dada a chance de recuperar e registrar os detalhes de sua história. É essa a missão da Comissão Nacional da Verdade, criada pela presidenta Dilma Rousseff (ela mesma vítima de torturas do Estado) e que tornou acessíveis uma série de papéis até então secretos. Desde maio de 2012, 19 milhões de páginas de documentos foram retirados de seus arquivos e estão em análise, e cerca de 350 pessoas foram ouvidas. É um movimento delicado e, para muitos, atrasado. Até então, o Brasil já havia debatido por anos como lidar com a violência da época.
A Ordem dos Advogados do Brasil chegou a pedir, em 2008, a revisão da Lei da Anistia, que perdoava todos os “crimes políticos” e beneficiava também torturadores, mas teve o pedido negado pela Justiça. Da sua parte, grupos militares se opunham à quebra de sigilo e à própria Comissão por temer uma caça às bruxas. Foi depois de muito diálogo que se chegou à fórmula de um grupo de trabalho com ênfase na transparência: a Comissão da Verdade pode acessar qualquer documento que considerar importante e tem o poder de convocar pessoas para depor, mas não de julgá-las. Do primeiro ano de trabalho, emergiram as conclusões de que a tortura começou em 1964, pouco depois do golpe, e ocorreu em pelo menos sete estados diferentes. Nesse pouco tempo, o Estado brasileiro admitiu que os assassinatos do deputadoRubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog foram obra de seus agentes, e descortinou o recrutamento e o extermínio de tribos indígenas da Amazônia pelos militares.
Tudo isso dá contornos mais nítidos à história recente do País, mas o grupo ainda tem muito a contar até dezembro de 2014, quando os trabalhos serão encerrados. Uma das principais incumbências da Comissão é esclarecer a participação das mulheres na resistência à ditadura e as torturas a que foram submetidas. “Acreditamos que as mulheres sofreram violências específicas, sexuais, motivadas também por machismo, que buscavam destruir a feminilidade e a maternidade delas”, afirma Glenda Mezarobba, uma das coordenadoras do grupo Ditadura e Gênero, que investiga o assunto na Comissão da Verdade. Os trabalhos ainda não possuem conclusões definitivas, mas há fortes indícios do que pode ter acontecido às brasileiras durante as duas décadas de regime militar. “Hoje, trabalhamos com um número de 500 mortos pela ditadura, 50 deles seriam mulheres. Mas sabemos que os dois números estão subestimados”, afirma Glenda, empenhada em refazer a estatística.
CENA COMUM EM 1968: A CAVALARIA DS POLÍCIA MILITAR TOMA A AVENIDA SÃO JOÃO, NO CENTRO DE SÃO PAULO (Foto: Acervo Memorial da Resistência de São Paulo)
CENA COMUM EM 1968: A CAVALARIA DS POLÍCIA MILITAR TOMA A AVENIDA SÃO JOÃO, NO CENTRO DE SÃO PAULO (FOTO: ACERVO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO)
A quantidade de processos reclamando anistia sugere que esse número é muito maior. Desde 2001, o Ministério da Justiça recebe pedidos de indenização de brasileiros que, de alguma maneira, tiveram a vida marcada pelo regime militar. São parentes e vítimas de violência ou pessoas que, por motivo exclusivamente político, ficaram impedidas de trabalhar. Hoje, o órgão contabiliza mais de 73 mil pedidos. Mais de 40 mil já foram aceitos. As mulheres foram fundamentais no combate ao regime em todas as suas fases. Seu engajamento nos movimentos pela anistia dos presos políticos, que muitas vezes culminaram com passeatas exclusivamente femininas,são a parte mais conhecida dessa militância. Mas, nas organizações de esquerda Ditadura, elas também foram importantes. Guardavam armas e abrigavam militantes (aliás eram preferidas para essa função, pois levantavam menos suspeitas), traduziam jornais comunistas estrangeiros, participavam das aulas de doutrinas ideológicas, da elaboração dos planos de assaltos e sequestros, tinham aulas de tiro e muitas foram a Cuba fazer curso de guerrilha. Nas organizações clandestinas, chegaram a dirigentes.
MANIFESTAÇÃO DE MULHERES CONTRA A VISITA DO ATIRADOR ARGENTINO JORGE VIDELA A SÃO PAULO, EM 1980 (Foto: Material Brasil Nunca Mais do Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp)
MANIFESTAÇÃO DE MULHERES CONTRA A VISITA DO ATIRADOR ARGENTINO JORGE VIDELA A SÃO PAULO, EM 1980 (FOTO: MATERIAL BRASIL NUNCA MAIS DO ARQUIVO EDGARD LEUENROTH/UNICAMP)

“Era preciso que houvesse uma mulher em cada esconderijo, para manter a aparência de uma casa normal”, afirma Glenda. Elas também agregavam uma faceta afetiva e familiar às organizações, muitas foram mães na clandestinidade ou na cadeia. Na descrição feita pela psicóloga argentina, naturalizada brasileira, Maria Cristina Ocariz, a mulher militante parece a expressão viva da frase do revolucionário argentino Ernesto Che Guevara: “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. “Elas tinham a mesma garra que os homens. Perdiam companheiros, assassinados pelo regime, e ainda assim seguiam na luta, não por frieza, mas por convicção ideológica de poder construir um mundo melhor para seus filhos.” Cristina, que hoje coordena a Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo, um serviço que oferece espaço para reparação psicológica aos afetados por ditaduras, fez parte da resistência aos militares argentinos antes de se exilar no Brasil. Na juventude, na década de 70, ela deixava seu bebê de 1 mês nos braços da mãe, em Buenos Aires, ia a manifestações e corria para casa a tempo de amamentar seu filho. Quando eram presas, as mulheres tinham pela frente não apenas a tortura, mas também o sexismo e a violência sexual. “É claro que ser mulher fazia diferença. Porque ainda que os homens torturados também tivessem de ficar nus, eles tiravam as roupas na frente de outros homens. A mulher ficava nua diante dos olhos cobiçosos e jocosos daqueles homens, essa era a primeira violência”, afirmaTatiana Merlino, organizadora do livro "Luta, Substantivo Feminino", publicado em 2010 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que descreve o assassinato de 45 mulheres militantes.
NUDEZ E TORTURA
“A primeira coisa que eles fizeram quando entrei na sala de depoimento foi me mandar tirar a roupa, eu já fiquei apavorada”, afirma Ana Maria Aratangy, de 66 anos. “Eu não esperava por aquilo. Eu mesma fui tirando a roupa, achei que era melhor do que deixá-los arrancar. Acho que foi pior do que as torturas que vieram depois”. Ana Maria era membro do Partido Operário Comunista quando foi presa, aos 24 anos, e estava grávida de algumas semanas, mas não sabia. Estudante do sexto ano de medicina, ela afirma que sua militância era tímida: guardava duas armas em casa e tinha leituras consideradas

subversivas. Nem sequer conhecia os líderes do POC. Até por isso, não teve muito a dizer quando vieram os choques nos mamilos e os tapas no rosto. Tampouco pôde conter os gritos. Enquanto gritava, sua mãe, que havia sido presa junto com ela, ouvia da sala ao lado. Ana Maria só saiu da prisão aos cinco meses de gestação. Sua filha, hoje, tem 41 anos.
PASSEATA DE MULHERES NO LARGO CARIOCA À CINELÂNDIA, NO RIO DE JANEIRO EM 1983 (Foto: Almir Veiga (CPDOCJB))
PASSEATA DE MULHERES NO LARGO CARIOCA À CINELÂNDIA, NO RIO DE JANEIRO EM 1983 (FOTO: ALMIR VEIGA (CPDOCJB))

“Depois de nos colocarem nuas, eles comentavam a gordura ou a magreza dos nossos corpos. Zombavam da menstruação e do leite materno. Diziam ‘você é puta mesmo, vagabunda’”, afirma Ana Mércia. As violências que seguiam incluíam, em geral, choques nas genitálias, palmatórias no rosto, sessões de espancamento no pau de arara, afogamentos ou torturas na cadeira do dragão, cujo assento era uma placa de metal que dava descargas elétricas no corpo amarrado do prisioneiro. Mas com as mulheres era diferente. “Havia uma voracidade do torturador sobre o corpo da torturada”, afirma a psicóloga Maria Auxiliadora Arantes, cuja tese de doutorado sobre tortura no Brasil será publicada este ano. “O corpo nu da mulher desencadeia reações no torturador, que quer fazer desse corpo um objeto de prazer.”
Foi exatamente o que viveu Ieda Seixas, de 65 anos. Aos 23, ela foi presa por causa da militância do pai, operário. Demorou muito tempo para ser capaz de relatar o que passou. E, quase 40 anos depois, não consegue conter as lágrimas ao descrever: “Levaram-me para um banheiro durante a noite, no DOI-Codi, eram uns dez homens. Fiquei sentada em um banco com dois deles me comprimindo, um de cada lado. Na minha frente, em uma cadeira, sentou um cara que chamavam de Bucéfalo. Ele me dava muito tapa na cara, a minha cabeça virava de um lado para o outro, mas eu nem sentia, porque um dos homens que estava sentado ao meu lado não parava de passar a mão em mim, colocou os dedos em todos os meus orifícios. Era tão terrível que eu pedia: ‘Coloquem-me no pau de arara’. Mas aquele homem dizia: ‘Não, gente. Não precisa levar essa aqui para o pau de arara. Comigo ela vai gozar e vai falar’.
Todos riam. Naquela noite, se eu tivesse tido meios, teria tentado me matar.” O suicídio pode ter sido o destino de outras mulheres que não conseguiram suportaram a violência sexual. Segundo Luci Buff, da Comissão da Verdade, começam a aparecer informações de que até mesmo freiras teriam sido estupradas por militares. Amélia Teles, de 68 anos, relata que não foi capaz de conter o vômito ao ver que o torturador ejaculava sobre seu corpo nu e ferido, depois de masturbar-se olhando para a vítima, amarrada na cadeira do dragão. Militante do Partido Comunista, ela tinha dois filhos, de 5 e 4 anos, quando foi presa, em 1972. O assédio sexual do torturador não foi a pior parte. Em um dos dias na prisão, depois de ser exaustivamente torturada Amélia viu a porta da sala se abrir e seus dois filhos entrarem. “Foi a pior coisa do mundo. Eu, amarrada (nua) na cadeira do dragão, sem nem poder abraçá-los. A minha filha me perguntou: ‘Mãe, por que você está azul?’. Eram as marcas dos hematomas, do sangue pisado, espalhados pelo meu corpo”, afirma Amélia. “Eles foram claros comigo: para manter meus filhos vivos, eu teria que colaborar com eles.” Os dois filhos hoje são adultos. Passaram por terapia e guardam apenas fragmentos de memória de sua visita ao DOI-Codi. Nenhum quis ter filhos. Amélia credita esse fato ao trauma na infância.
A LÍDER ESTUDANTIL CATARINA MELONI EM PASSEATA. MAIS TARDE, ELA ESCREVERIA O LIVRO"1968: O TEMPO DAS ESCOLHAS" (Foto: Jesus Carlos (Imagem Global))
A LÍDER ESTUDANTIL CATARINA MELONI EM PASSEATA. MAIS TARDE, ELA ESCREVERIA O LIVRO"1968: O TEMPO DAS ESCOLHAS" (FOTO: JESUS CARLOS (IMAGEM GLOBAL))

Agredir crianças para atingir a mãe não era um recurso excepcional. Nem sequer as mulheres grávidas eram poupadas. Em 1974, com uma barriga de seis meses de gestação, a militante do grupo revolucionário MR-8 Nádia Nascimento foi presa, junto com o seu companheiro, em São Paulo. “Já foram logo me dizendo que filho  de comunista não merecia nascer. Arrancaram minha roupa na frente do meu companheiro, que já estava muito machucado pela tortura, e perguntavam se ele queria que me torturassem, diziam que dependia dele. Ameaçaram me estuprar na frente dele, mesmo grávida. Até que,em um dado momento, me colocaram na cadeira do dragão. Ali, comecei a sangrar por causa dos choques e perdi meu filho”, conta Nádia, que teve uma série de complicações médicas decorrentes do aborto provocado e da falta de cuidados hospitalares. A criança se chamaria Lucas e hoje teria 39 anos de idade.
Também presa aos seis meses de gestação, Criméia de Almeida, de 67 anos, conseguiu manter seu filho na barriga, a despeito das torturas. Quando a bolsa estourou, na cela solitária que ela ocupava em uma carceragem do exército em Brasília, dezenas de baratas que habitavam o lugar começaram a subir por suas pernas, alvoroçadas por se alimentar do líquido amniótico. Embora pedisse ajuda, teve de esperar horas até ser transferida a um hospital. Lá, a ex-guerrilheira do Araguaia, que havia trabalhado como parteira na Amazônia, teve as pernas e os braços amarrados. “Quando o bebê nasceu, já o levaram para longe de mim. E o médico me costurou sem anestesia, eu gritava de dor. Daí passaram a usar meu filho para me torturar. Passavam dois dias sem trazê-lo para mamar. Quando ele vinha, estava com soluço, magro, morto de fome. Ele nasceu com quase 3,2 kg. Mas com um mês de vida pesava apenas 2,7 kg. Na infância, ele tinha muitos pesadelos, chegou a ter convulsões. É claro que ficaram traumas em todos nós. Quando eu estava presa e ouvia o tilintar de chaves na carceragem, que significava que alguém seria torturado, o bebê começava a soluçar dentro do útero. Hoje, aos 40 anos, João Carlos ainda soluça toda vez que fica estressado”, afirma Criméia.

Sobre a experiência, a ministra diz: “A Maria superou tudo e hoje é uma vencedora. Eu também superei. Tive outro filho que me deu a certeza de que o que fiz foi correto e me mostrou que eu ainda era capaz de ser mãe mesmo depois de todas as torturas que sofri
. Mas, ainda assim, relembrar isso é muito sofrido. Acho que cada um resolve à sua maneira. A Maria aprendeu a lidar com isso com mais liberdade e menos sofrimento. Eu, tudo o que tinha de falar, eu falei. Porque o pior não é a tortura física, mas a psicológica, a ameaça. As ameaças que faziam comigo de torturar a Maria na minha frente eram tão pesadas que talvez fossem mais fortes do que a própria tortura em si”.Ele não conheceu o pai, André Grabois, que até hoje é considerado desaparecido político. Criméia não teve a chance de enterrar seu companheiro. É provável que André tenha sido assassinado pelos militares durante a guerrilha do Araguaia – movimento comunista na região amazônica combatido pelo governo entre 1972 e 1974, no qual acredita-se que os militares tenham lançado bombas de Napalm, o mesmo químico usado no Vietnã, de acordo com mais uma revelação recente da Comissão da Verdade. Sorridente até ali, em um evento sobre educação internacional para mulheres, a ministra das mulheres, Eleonora Menicucci, ganhou um semblante pesado ao ser indagada por Marie Claire sobre sua história na ditadura. Quando foi presa, em 1971, tinha apenas 22 anos e uma filha de 1 ano e 10 meses. Para forçála a dar informações de sua atividade política, os militares colocaram a menina, Maria,  apenas de fralda, no frio. A criança chorava e os torturadores ameaçavam dar choques nela. Ieda Seixas, que foi aprisionada na mesma cela que a atual ministra logo depois dessa sessão de tortura, afirma: “A Eleonora andava como um animal enjaulado, de um lado para o outro, e dizia ‘minha filha, minha filha’. Tinha os olhos esbugalhados, passava a mão pelos cabelos com desespero, parecia que ia explodir. Era mais do que estar transtornada, ela estava em estado de choque”.
AS GRADES DO DOPS (Foto:  Material Brasil Nunca Mais do Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp)
AS GRADES DO DOPS (FOTO: MATERIAL BRASIL NUNCA MAIS DO ARQUIVO EDGARD LEUENROTH/UNICAMP)







O FUTURO
É com essa mesma memória que o Brasil tenta aos poucos lidar. A abertura dos arquivos e os depoimentos, que pode resultar em processos contra os torturadores, não são as únicas manifestações. No cinema, "Hoje", filme da diretora Tata Amaral, mostra o quão atual é nossa dívida com a história. A protagonista do longa, vivida pela atriz Denise Fraga, é uma ex-militante de esquerda cujo marido foi morto pelos militares. Ela recebe uma indenização pela morte dele e compra um apartamento, mas, no dia da mudança, o desaparecido ressurge. A figura do retorno mostra como é difícil seguir em frente sem resolver o passado. É assim no filme e na vida de Criméia, Amélia, Ieda, Ana Mércia e Ana Maria. “Ao fazer "Hoje", me deparo com uma sociedade que permite que sua memória seja roubada. E que aceita que, neste momento, alguém esteja sendo torturado numa prisão brasileira. Será que em algum momento a gente vai dizer: ‘Chega!’?”

19 de set. de 2013

Propaganda: a alma do negócio e vestígio da história

Ler e visualizar propagandas antigas em jornais é uma diversão. Os textos enaltecendo os produtos ou serviços são diferentes do que hoje conhecemos como textos de comerciais. A diferença também se apresenta nos desenhos feitos à mão, nas fotografias (que substituíram os desenhos), na forma de "vender o peixe".
Hoje publico uma propaganda de 1941 encontrada no jornal Correio da Manhã, na edição do dia 29 de Janeiro. Observem o desenho e o texto super requintado para vender o batom e demais cosméticos da empresa Michel.

Dica: se ficar ruim de ler o texto diretamente do blog, salve a imagem no seu computador. Ela será salva em uma boa qualidade para a leitura.  


18 de set. de 2013

É menina!


Sobre as (des)venturas de um gênero e as frases que acompanham uma parte da vida da menina:

É menina, que coisa mais fofa, parece com o pai, parece com a mãe, parece um joelho, upa, upa, não chora, isso é choro de fome, isso é choro de sono, isso é choro de chata, choro de menina, igualzinha à mãe, achou, sumiu, achou, não faz pirraça, coitada, tem que deixar chorar, vocês fazem tudo o que ela quer, isso vai crescer mimada, eu queria essa vida pra mim, dormir e mamar, aproveita enquanto ela ainda não engatinha, isso daí quando começa a andar é um inferno, daqui a pouco começa a falar, daí não para mais, ela precisa é de um irmão, foi só falar, olha só quem vai ganhar um irmãozinho, tomara que seja menino pra formar um casal, ela tá até mais quieta depois que ele nasceu, parece que ela cuida dele, esses dois vão ser inseparáveis, ela deve morrer de ciúmes, ele já nasceu falante, menino é outra coisa, desde que ele nasceu parece que ela cresceu, já tá uma menina, quando é que vai pra creche, ela não larga dessa boneca por nada, já podia ser mãe, já sabe escrever o nomezinho, quantos dedos têm aqui, qual é a sua princesa da Disney
preferida, quem você prefere, o papai ou a mamãe, quem é o seu namoradinho, quem é o seu príncipe da Disney preferido, já se maquia dessa idade, é apaixonada pelo pai, cadê o Ken, daqui a pouco vira mocinha, eu te peguei no colo, só falta ficar mais alta que eu, finalmente largou a boneca, já tava na hora, agora deve tá pensando besteira, soube que virou mocinha, ganhou corpo, tenho uma dieta boa pra você, a dieta do ovo, a dieta do tipo sanguíneo, a dieta da água gelada, essa barriga só resolve com cinta, que corpão, essa menina é um perigo, vai ter que voltar antes de meia-noite, o seu irmão é diferente, menino é outra coisa, vai pela sombra, não sorri pro porteiro, não sorri pro pedreiro, quem é esse menino, se o seu pai descobrir, ele te mata, esse menino é filho de quem, cuidado que homem não presta, não pode dar confiança, não vai pra casa dele, homem gosta é de mulher difícil, tem que se dar valor, homem é tudo igual, segura esse homem, não fuxica, não mexe nas coisas dele, tem coisa que é melhor a gente não saber, não pergunta demais que ele te abandona, o que os olhos não veem o coração não sente, quando é que vão casar, ele tá te enrolando, morar junto é casar, quando é que vão ter filho, ele tá te enrolando, barriga pontuda deve ser menina, é menina.

Por Gregório Duvivier. Retirado daqui.

16 de set. de 2013

Europa: fronteiras a conquistar e defender

O post de hoje é sobre um vídeo que mostra "o bailado das fronteiras e povos" que povoaram e povoam a Europa. Super sucinto, super rápido, cerca de três minutos para contar milhares de anos de povoamento do continente europeu.

Não consegui postar o vídeo diretamente aqui, portanto segue o link: http://www.liveleak.com/view?i=f54_1337075813

13 de set. de 2013

12.000 Anos de História: o documentário

O post de hoje apresenta um extenso trabalho de pesquisa e elaboração. Esse é um dos produtos finais da exposição "12.000 Anos de História - Arqueologia e Pré-História do RS" que está em exposição no Museu da UFRGS em Porto Alegre até 31 de Dezembro de 2013.
Um ótimo recurso didático para quem quer saber mais dessa extensa época da História. Pois a "Pré-História" vai muito além do "Neolítico, Paleolítico e Idade dos Metais"!

Segue o link do documentário:


Segue informações sobre a exposição no Museu da UFRGS:
A exposição está aberta a visitação de segundas a sextas das 9 às 18 horas, entre 23 de de abril e 31 de dezembro de 2013. No último sábado de cada mês a mostra estará aberta à visitação das 9 às 13 horas. Além da exposição, durante o ano serão disponibilizadas oficinas, cursos de capacitação de professores e kits arqueológicos didático/pedagógicos.O Museu da UFRGS fica na Av. Osvaldo Aranha, 277, Porto Alegre. A entrada é franca.

11 de set. de 2013

Onze de Setembro de 1973: Quarenta anos do Golpe Militar no Chile


Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.

O post e hoje não pode deixar de falar sobre a data. Onze de Setembro. Muitos lembrarão da queda das Torres Gêmeas em Nova York ocorrida em 2001. Entretanto, outro onze de Setembro envolvendo os EUA ocorreu em 1973. Daquele ano, eles não foram vítimas, mas participaram como algozes.
Segue a reportagem do Jornal Sul 21 sobre a data. Não esquecer que em 2011 eu postei um vídeo.

O dia final de Salvador Allende

Maurício Brum
No início da manhã de 11 de setembro de 1973, Salvador Allende ainda acreditava que o golpe de Estado em andamento poderia ser contornado. Não era a primeira vez que um grupo de militares se insurgia contra o governo. Agora, o levante havia começado pela Armada – e restava a esperança de que a revolta fosse reduzida a alguns navios no porto de Valparaíso. Allende confiava que Augusto Pinochet permaneceria tão leal quanto fora Carlos Prats, seu antecessor no comando do Exército. Acreditava que o golpe seria vencido ou, caso viesse mesmo, que não teria o aval de Pinochet. Mas seguia sem conseguir contato para se comunicar com o general.
– Pobre Augusto, deve estar preso – comentou o presidente com alguns companheiros próximos.
Naquela altura, Allende já se localizava no palácio de La Moneda. Havia sido acordado pouco depois das seis da manhã, por um telefonema inquietante informando a situação em Valparaíso: a cidade fora sitiada e jazia na mira de canhões dos navios de guerra do próprio país. O presidente puxou o telefone para tomar a posição do comandante da Marinha, Raúl Montero, mas não obteve resposta. Depois, tentou chamar Pinochet, que também não atendeu. O único a responder foi o general golpista Herman Brady, com a promessa jamais cumprida de enviar soldados para combater o movimento no litoral.
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Enquanto isso, o almirante Montero era mantido em prisão domiciliar por seus subordinados, agora às ordens de José Toribio Merino, que se autodenominou chefe da Armada. Já Pinochet estava encabeçando o golpe, embora o presidente ainda não soubesse. Por volta das 7:35 da manhã, enquanto Allende chegava a La Moneda, o comandante do Exército também desembarcava em sua base de combate naquela manhã: o quartel de telecomunicações de Peñalolén, na zona leste de Santiago, de onde passaria as instruções decisivas para a derrocada do governo constitucional.
Leia mais:
Ainda sem saber a dimensão do putsch, Salvador Allende entrou ao vivo na frequência da Rádio Corporación duas vezes antes de os militares lerem seu primeiro comunicado do dia. Em suas incursões, o presidente reiterou que “até o momento, não houve nenhum movimento anormal de tropas em Santiago”, e manifestou fé na existência de regimentos leais que não se somariam à intentona. Mas suas esperanças se esvaíram pouco depois disso, às oito e meia, quando o tenente-coronel Roberto Guillard leu a carta da Junta Militar numa cadeia de rádios de oposição. Sua voz vinha desde o quinto andar do Ministério de Defesa, taxativa:
Santiago, 11 de setembro de 1973.
Tendo presente:
Primeiro: a gravíssima crise econômica, social e moral que está destruindo o país;
Segundo: a incapacidade do governo para adotar as medidas que permitam deter o processo e desenvolvimento do caso;
Terceiro: o constante incremento dos grupos paramilitares, organizados e treinados pelos partidos políticos da Unidade Popular que levarão o Chile a uma inevitável guerra civil, as Forças Armadas e Carabineros do Chile declaram:
Primeiro: que o senhor presidente da república deve proceder a entrega imediata de seu alto cargo às Forças Armadas e Carabineros do Chile;
Segundo: que as Forças Armadas e o corpo de Carabineros do Chile estão unidos para iniciar a histórica e responsável missão de lutar pela liberação da Pátria do jugo marxista, e a restauração da ordem e da institucionalidade;
Terceiro: os trabalhadores do Chile podem ter a segurança de que as conquistas econômicas e sociais que alcançaram até hoje não sofrerão modificações no fundamental;
Quarto: a imprensa, rádios e canais de televisão favoráveis à Unidade Popular devem suspender suas atividades informativas a partir deste instante. Do contrário receberão castigo aéreo e terrestre.
Quinto: o povo de Santiago deve permanecer em suas casas a fim de evitar vítimas inocentes.
Entre os comandantes – verdadeiros ou autodenominados – que assinavam o documento, estava o nome de Augusto Pinochet. Sua presença na lista confirmava a adesão do Exército ao golpe – e a impossibilidade de o governo superá-lo.
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O plebiscito que não houve
O golpe aconteceu numa terça-feira. O final de semana anterior havia sido marcado por uma série de reuniões de Allende com lideranças políticas e militares, discutindo as alternativas para o futuro imediato do país. Os problemas do governo iam além da crise econômica impulsionada por seus próprios erros estratégicos e pelos boicotes norte-americanos. Também estavam presentes o terrorismo da ultradireita, as greves dos sindicatos de oposição, em especial o dos caminhoneiros, o desabastecimento do comércio e a inflação perene. As Forças Armadas vacilavam em suas convicções democráticas e os partidos de oposição – e boa parte da sociedade – já apoiavam uma intervenção militar, acreditando um retorno rápido à normalidade.
Dentro da Unidade Popular, duas teses se confrontavam para decidir a estratégia a seguir. Um lado, encabeçado pelos socialistas, desejava acelerar as mudanças mesmo que à revelia da legalidade, impondo antes de negociar. A outra corrente, defendida pelos comunistas e por Allende, queria chamar ao diálogo com os adversários, mesmo que isso arriscasse ceder em parte das mudanças levadas a cabo pelo governo nos últimos três anos. Depois de avançar rápido demais e ver a situação se tornar ingovernável, a ala moderada da UP se esforçou para buscar uma saída e evitar mais derramamento de sangue. Sentindo-se encurralado, o presidente idealizou uma alternativa drástica: um grande plebiscito nacional pela continuidade ou não de sua administração.
Parecia-lhe a maneira mais honrosa de deixar o cargo sem correr o risco de jogar o país numa quebra institucional. Salvador Allende sabia que seria derrotado. Desde sua vitória, em setembro de 1970, a UP só teve a maioria absoluta do eleitorado uma vez – em março de 1971, e mesmo assim somando as cidades de todo o país nos pleitos municipais, com uma margem estreitíssima. Aquele triunfo aproveitou o sucesso econômico dos meses iniciais do governo, mas não correspondia ao cenário real e dividido da política chilena. Allende mesmo fora eleito com apenas 36,6% dos votos, numa disputa rachada entre três nomes. Ainda assim, segundo seus assessores mais próximos, o presidente estava disposto a renunciar tão logo o plebiscito o derrotasse.
Os chilenos, porém, não saberiam de suas reais intenções até a década de 90: nunca houve tempo de convocar a votação pretendida por Allende. No domingo, 9 de setembro de 1973, o mandatário havia convocado dois generais para uma reunião decisiva em que comentou precisamente seu projeto de colocar nas mãos da cidadania os rumos do poder. Naquela manhã, Augusto Pinochet e Herman Brady – o homem que atenderia o telefonema presidencial no dia 11 – apresentaram-se no escritório do mandatário. Sem desconfiar que estava diante de dois dos principais conspiradores a favor do golpe, Allende confidenciou-lhes a intenção de chamar o povo às urnas. Surpreso, Pinochet afirmou:
– Isso muda toda a situação, presidente. Vai ser possível resolver o conflito com o Parlamento e isso aliviará a tensão.
O que aquela descoberta realmente mudou foi a data do golpe. Fazendo um eterno jogo duplo para se posicionar em público sempre ao lado do mais forte, Pinochet já estava convencido pela causa golpista, e concluiu que a sublevação precisaria ocorrer antes do discurso presidencial. Uma intervenção dos fardados perderia muito de seu apoio caso a população soubesse da proposta de uma saída democrática para o impasse político. O levante estava previsto para antes das Festas Pátrias de 18 e 19 de setembro, para evitar uma nova parada militar diante do presidente que se queria derrubar. Mas a insurreição provavelmente só aconteceria por volta do dia 14, quando ocorriam os ensaios para o desfile e um deslocamento de tropas até Santiago seria menos suspeito.
Municiado pelas novas informações, Pinochet se reuniu naquela mesma noite do dia 9 com Merino e Gustavo Leigh, comandante da Aeronáutica. Foi durante a festa de treze anos de sua filha, Jacqueline Pinochet, que o general e os demais conjurados chegaram ao acordo de antecipar o “Dia D” para às seis da manhã de 11 de setembro – cinco horas antes do momento em que Allende tomaria os microfones para anunciar seu plebiscito.
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Santiago como um grande quartel
Se aquele fosse um dia comum e a agenda do presidente se mantivesse inalterada, a manhã do 11 marcaria a abertura da exposição “Por la vida siempre”, na Universidade Técnica do Estado (UTE). Até o final do mês, em todos os polos da instituição pelo país, estavam previstas quinhentas exposições mais ou menos simultâneas, expondo os horrores de uma guerra civil – que se temia para o Chile naquele contexto de divisão. As “jornadas antifascistas”, como chegaram a ser chamadas, seriam inauguradas por Salvador Allende no campus da UTE de Santiago, no mesmo ato em que pretendia anunciar oficialmente a realização do plebiscito.
No entanto, desde a véspera aquela programação pouco a pouco ganhou contornos de hipótese improvável. O presidente passou a noite de 10 de setembro reunido em sua residência oficial com vários assessores, planejando o dia seguinte. Perto da meia-noite, a conversa foi interrompida por um telefonema com o aviso: agricultores residentes na beira da rodovia tinham testemunhado o deslocamento de vários caminhões militares, saídos das cidades de Los Andes e San Felipe com direção à capital. Apesar do movimento suspeito, Allende não ficou atarantado:
– Se eu fosse acreditar em todos os rumores que ouço, ficaria louco – disse aos colegas.
Quando o mandatário se deitou para uma breve noite de sono antes do dia agitado, já havia comprado a versão do Exército: os soldados enviados para Santiago ajudariam a reforçar a segurança da cidade na manhã seguinte, quando poderia haver protestos no centro. Em meio a tantos acontecimentos, o 11 de setembro previa um importante evento a mais: a Justiça realizaria a sessão em que suspenderia o foro privilegiado do senador Carlos Altamirano e do deputado Guillermo Garratón, membros da base aliada de Allende que haviam acolhido as denúncias de um grupo de marinheiros, os quais garantiam ter ouvido seus superiores falando de uma trama golpista. A Armada, evidentemente, negava tudo – e pretendia processar os políticos.
Nem Altamirano nem Garretón chegaram a ter sua imunidade parlamentar formalmente cancelada porque, no dia 11, o próprio conceito de parlamentar – e de imune – se tornou alienígena. Os magistrados não puderam se reunir para julgar a causa; os fatos atropelaram o processo e confirmaram que a Marinha estava mesmo planejando o golpe denunciado por seus recrutas e, principalmente, os mandatos dos dois políticos – e de todo o Congresso – logo seriam anulados pelo novo regime. O Parlamento chileno foi dissolvido por um decreto autoritário da Junta Militar e permaneceu fechado até 1990, na volta à democracia.
Allende começou a tomar conhecimento de tudo o que estava passando no país graças àquele telefonema do início da manhã, mas antes disso as tropas já estavam dando os primeiros passos. No campus da UTE, onde deveria acontecer o ato presidencial, uma patrulha militar invadiu a rádio universitária e destruiu suas instalações, impedindo-a de funcionar. Este seria o primeiro atentado contra uma emissora favorável ao governo: ao longo da manhã do golpe, as poucas rádios que ainda colocavam os pronunciamentos de Allende no ar foram silenciadas rapidamente, com suas torres bombardeadas pelos aviões militares.
O presidente começou o dia falando em três rádios principais – a Corporación, a Portales e a Magallanes – e, na altura de seu último discurso, só uma delas ainda estaria operando. As demais emissoras do país ainda no ar ficaram tocando intermináveis marchas militares, interrompidas apenas pelos decretos emitidos ordinariamente pela Junta: ameaças de fuzilar no ato quem tentasse resistir ao golpe, recomendações para que o povo não saísse às ruas, listas de nomes de “extremistas” que deviam se entregar, ultimatos ao presidente e aos companheiros que insistiam em resistir no palácio.
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Eu não vou renunciar”
A resistência de La Moneda durou a manhã inteira. No início do dia, o prédio ainda era guarnecido por um grupo de Carabineros, com a presença do próprio diretor da corporação, o general José Sepúlveda. No entanto, essa presença não durou muito: os soldados desertaram quando o primeiro decreto da Junta veio ao ar e o desconhecido César Mendoza assinou como comandante da instituição. A exemplo do que Merino fizera na Armada, Mendoza também deu um golpe interno nos Carabineros: no seu caso, passou a perna em seis generais mais antigos e virou diretor “de fato” ao assumir o controle da central de telecomunicações da polícia, de onde pôde dar ordens ao país inteiro.
Sem suporte militar de qualquer tipo, os defensores do palácio resistiram usando as armas abandonadas pelos próprios Carabineros, além do equipamento mantido pela escolta presidencial. Tratava-se, evidentemente, de uma resistência simbólica: menos de uma centena de homens parcamente armados contra todo o aparato militar do Chile. Com o tempo correndo perigosamente contra, Allende entrou em contato com a última emissora de rádio aliada ainda no ar. Às 9:10, os chilenos sintonizados na Rádio Magallanes puderam ouvir, entre nuvens de estática, o último discurso do presidente:
Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei me dirigir a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Portales e da Rádio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para aqueles que traíram o juramento que fizeram: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Armada, mais o senhor Mendoza, general rasteiro que ainda ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou Diretor Geral de Carabineros.
Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: eu não vou renunciar.
Colocado em um transite histórico, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser segada definitivamente. Têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detêm os processos sociais, nem com o crime, nem com a força.
A história é nossa e a fazem os povos.
Trabalhadores da minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que apenas foi intérprete de grandes desejos de justiça. Que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez. Neste momento definitivo, o último em que eu poderei me dirigir a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação, criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição. [...]
Seguramente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranquilo de minha voz não chegará vocês. Não importa. Seguirão me ouvindo. Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos minha lembrança será a de um homem digno que foi leal com a Pátria.
O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve se deixar arrasar nem se crivar de balas, mas tampouco deve se humilhar.
Trabalhadores de minha Pátria: tenho fé no Chile e em seu destino. Superarão outros homens este momento gris e amargo em que a traição pretende se impor. Sigam vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre para construir uma sociedade melhor.
Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!
Estas são minhas últimas palavras, e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a tradição.
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O cerco final a La Moneda
Após a despedida de Allende, La Moneda se viu rodeada por tanques. No restante da manhã, a Junta reiterou suas ofertas para que o presidente renunciasse ao cargo para ter sua integridade física mantida. Os militares prometiam deixar um avião à disposição para levá-lo a qualquer parte em que desejasse se asilar. Salvador Allende, porém, não aceitou. Em 1985, vazaram gravações das conversas internas dos comandantes, em que Pinochet diz textualmente:
– Mantém-se o oferecimento de retirá-lo do país… e o avião cai, viejo, durante o voo – ao fundo, os colegas do general gargalhavam.
O bombardeio aéreo do palácio atrasou por quase uma hora. Prometido para as onze da manhã, teve seu início apenas às 11:52, quando foi disparado o primeiro dos 79 mísseis a saírem dos caças Hawker Hunter. Antes disso, a residência presidencial, localizada em outro ponto de Santiago, também havia sofrido ataque aéreo. Lá estava a primeira-dama, Hortensia Bussi, que conseguiu fugir escondida num automóvel dirigido por um guarda-costas.
As bombas caíram sobre La Moneda por cerca de 25 minutos. Depois, aproveitando-se dos rombos abertos no palácio, helicópteros se aproximaram e lançaram granadas de gás lacrimogêneo. Apesar de toda a violência do ataque, o 11 de setembro deixaria somente duas vítimas na sede do governo chileno: dois suicídios. O primeiro foi o jornalista Augusto Olivares, diretor da Televisão Nacional, enquanto o bombardeio acontecia. O segundo, apesar das controvérsias que essa afirmação gerou nessas quatro décadas, foi Salvador Allende.
Por muitos anos a versão do suicídio do presidente foi combatida, inclusive por outros defensores do palácio, que garantiam ter presenciado uma troca de tiros. Nos tempos de resistência à ditadura, parecia mais útil a imagem do homem que morrera lutando do que o suicídio honroso de alguém que se recusou a cair nas mãos dos inimigos. Fidel Castro endossou essa versão num discurso que deu em Havana no fim daquele setembro sombrio, e mais tarde seria a vez de Gabriel García Márquez dar ainda mais força à lenda, com um texto baseado em relatos de testemunhas em que confirmava a ocorrência de um tiroteio entre o presidente e os homens do general Javier Palacios – que comandou a invasão ao prédio.
A cada aniversário do golpe, novos livros tentando comprovar “a verdadeira história” por trás das horas finais de Salvador Allende reconstroem as versões, e ainda hoje são escritos textos reforçando a tese do tiroteio. No entanto, na obra mais exaustiva a respeito do assunto – El último día de Salvador Allende, de 2008 –, o médico Óscar Soto confirma de forma convicta o suicídio. Tal sustentação também veio de todas as autópsias encomendadas periodicamente pelos governos chilenos após a volta à democracia.
Cardiologista do presidente, Soto esteve no palácio naquele dia e participou de reconstituições com outros colegas da defesa. De acordo com seu relato, por volta da uma e meia da tarde e já sem chances de resistir, Allende havia pedido que os colegas se rendessem, saindo pela porta lateral do prédio, que dá na rua Morandé. Anunciou que seria o último da fila, mas aproveitou a confusão e se retirou no Salão da Independência, onde tirou a própria vida com o AK-47 que lhe havia sido presenteado por Fidel, anos antes. O tiro foi ouvido das escadarias, seguido pelo grito enlouquecido de Enrique Huerta, responsável pela manutenção do palácio:
– Allende morreu! Viva o Chile!
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Longe do palácio, as outras vítimas de La Moneda
Huerta chegou a recolher a arma do tapete para acompanhar a imolação do mandatário, mas foi convencido de que seu sacrifício seria inútil pelo médico Héctor Pincheira. Os dois decidiram respeitar a última ordem de Allende e saíram do prédio pela porta lateral, onde – como todos os demais – foram imediatamente obrigados a se deitar de bruços no chão. A imagem ficou famosa: correram o mundo os registros dos defensores de La Moneda jogados na rua diante das lagartas ameaçadoras de um tanque de guerra.
Ninguém morreu no asfalto de Morandé, mas nos dias seguintes muitos outros nomes se somaram à listagem de vítimas do palácio, que inicialmente contava apenas com Augusto Olivares e Salvador Allende. Dos 56 prisioneiros capturados com vida, 24 foram vítimas de execuções sumárias ou se tornariam desaparecidos políticos, inclusive Héctor Pincheira e Enrique Huerta. A repressão logo se abateu por todo o país, acompanhada pela imposição de um toque de recolher que vigorou até o dia 13. O país já era outro quando se pôde voltar às ruas. Sua posição no cenário político internacional, também: alguns rapidamente criticaram a brutalidade do novo regime, outros silenciaram. A grande maioria, mais cedo ou mais tarde, lembrou dos acordos comerciais para ignorar as violações de direitos humanos.
Mas houve uma nação que se antecipou às demais. Alguns anos mais tarde, Augusto Pinochet lançou um livro de memórias chamado El día decisivo, sobre os preparativos do golpe. Montado como se fosse uma entrevista, com perguntas e respostas, o volume inclui a seguinte interrogação:
Pergunta: Nesse dia [11 de setembro], algum país reconheceu o novo governo do Chile?
Pinochet: Sim. Nessa tarde eu me encontrava no escritório do Diretor da Escola Militar, quando chegou o Embaixador do Brasil no Chile, senhor Câmara Canto, para dizer que seu país reconhecia o novo governo do Chile, nobre gesto desse país irmãos que os chilenos nunca esqueceremos.
O Brasil, que havia dado apoio de bastidores ao golpe, não sentiu qualquer constrangimento em assumir a trama nas horas seguintes à morte de Allende. O governo Médici seria o primeiro em todo o mundo a emprestar dinheiro para Pinochet começar a “reconstrução” do Chile, e logo autorizou o envio de medicamentos, alimentos e combustíveis para Santiago. Também mandou um destacamento de “especialistas em interrogatórios”, com a missão de ensinar aos militares transandinos as técnicas de tortura mais eficientes empregadas nos porões brasileiros. Era o início de uma frutífera relação entre as duas ditaduras.
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